Quando Lisboa não tinha saneamento básico, as casas mais abastadas tinham o calhandro. Os calhandreiros, escravos que levavam os calhandros para despejar, encontravam-se e contavam entre si os acontecimentos das casas onde viviam.... Não foi assim há tanto tempo. Aboliu-se a escravatura, instalou-se a rede de esgotos na capital, que na minha aldeia ainda não existe.... e actualizou-se o calhando. O calhandro agora é informático. E a escravatura actual é detida pelo dinheiro.
Dizem que o dinheiro é vil. Vil metal.
Dizem que é pecado adorar o bezerro d'ouro...
Mas é esse metal, que já é de plástico e da mesma forma que o calhandro é virtual, possui escravos... Escravos que se encontram às esquinas da net, trocam SMS a contar o que se passa nas casas dos donos. São doutores. Alguns até professores de doutores.
E calhamdram.
Dizem que fica tudo na nuvem... cloud... que é mais chique.
Portugal nunca teve carência de calhandreiros.
Chamaram-se formigas, informadores... forneceram milhares de vítimas à Santa Inquisição, ao Intendente Pina Manique, à Rua António Maria Cardoso.... Mais que calhandreiros eram bufos. Bufos!
O rótulo da desonra!
País pobre. Com pobres de pedir esmola. País de sol e mar, marinheiros e camponeses, trolhas e fadistas. Nunca foi pobre em bufos.
A ignorância, a fome crónica e a ausência de cultura social, foram sempre a grande desculpa.
Mudou o escravocrata. O dinheiro, vil metal, bezero d'ouro numa população de católicos de ver a deus pontualmente, estender língua a hóstias de pão ázimo e defender os Direitos Humanos, fez emergir o calhandreiro instruído, no topo da escala social, abastado e empanturrado.
O bufo é o mais execrável ser humano desta sociedade em que alegremente continuamos pobres.
Esperemos que a nuvem... cloud que é mais chique... não resolva abrir-se e largar-nos em cima a carga nauseabunda de todos os calhandros acumulados....
Poema do Fecho éclair
Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.
...............
Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco
a tíbia de um santo
guardada num frasco.
.............
Tinha tudo, tudo
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.
O que ele não tinha
era um fecho éclair.
(António Gedeão - 1906-1997)