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01 ABR 2017
Dona Bárbara e o abrunheiro
Por Jornal Abarca

Chegando Março, Dona Bárbara, a professora, sintonizada com o abrunheiro do nosso quintal encomendava uma redacção intitulada “a Primavera” e eu ficava horas à frente do caderno sem saber o que escrever que não fosse os passarinhos e as flores. As flores graças ao abrunheiro da minha avó, o tal que se recusou a florir enquanto ela foi a África.

Quando já não precisava escrever redacções, as primaveras sucederam-se e até serviram para rotular revoluções e outras grandezas assim, eis que me chega a encomenda e eu fico aqui, em frente desta folha branca…os passarinhos, os atentados em cidades da Europa com mortos à facada e atropelamentos fanáticos, formigas desorientadas a correrem pelo mundo que lhes arrancou as flores dos seus países para se vingarem do infinito em que se transformaram as suas primaveras…

Vejo constantemente aquelas caras que sorriem na cimeira dos Açores e sobrepostas as imagens de Sadam enforcado e Kadaffi e fugir no deserto como um rato… e em vagas sucessivas aqueles milhares de líbios e fugitivos de todos os países destroçados atravessando o Mediterrâneo em balsas pneumáticas. E a morrerem. Como tordos… os passarinhos dessas primaveras… Sobressaem as crianças nos noticiários. Como se a vida fosse mais importante por serem crianças.

As primaveras e as punições que destruíram países e dispersaram povos vão tendo as represálias anunciadas.

É a inquietação absoluta.

Ninguém está livre.

Todos somos culpados.

Todos podemos ser vítimas.

Resta esperar que a mancha oleosa do ódio genuíno se esbata, coisa de duas ou três gerações, para alívio de nossos medos.

Dona Bárbara e o abrunheiro, emblemáticas recordações dessas primaveras distantes em que a folha do caderno se contentava com passarinhos e flores, minha mãe comprava um pacotinho de amêndoas no Confeiteiro e assistíamos à procissão dos Passos com o Júlio sapateiro a segurar no pendão, nada parecem ter a ver com as flores que explodem em Paris ou espetam polícias em Londres, nem os afogados do Mediterrâneo com os passarinhos da minha infância. E, contudo, eu fico aqui, diante da folha branca e não sei se escreva medo.

Quando vier a Primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Fernando Pessoa(Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos")1889-1935

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