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01 JUN 2017
E a carroça das cerejas lá segue...
Por Jornal Abarca

Eram quase sete da tarde. Uma tarde quente de Verão magrebino de Lisboa, com carros eléctricos, automóveis, táxis, uma carroça com cerejas, ardinas almorávidas que apregoam jornais, o sinaleiro impecavelmente fardado no seu palanque… Sete da tarde nos Restauradores.

Começavam a passar as costureiras, os caixeiros, os escriturários.

Junto aos telefones, meu pai encontra o Villaret. Abraço, conversa "que é feito do Carlos?" "Está p’ra África, sei dele porque sou médico do pai". Villaret começa a contar-lhe uma anedota comprida que mete uma cena de pancadaria. Entusiasmados, não se apercebem que na esquina do teatro Nacional se prefigura o Carlos que observa a cena. Conclui que o outro está a agredir meu pai, não reconhece Villaret que está de costas e há muita gente a passar. Não pensa duas vezes. Atravessa pelo meio dos carros, trava o eléctrico que guincha nas bielas e mecanismos, gemem travões e pneus, ouvem-se impropérios, o sinaleiro desce do pedestal a apitar sem parança, há gritos, a senhora de vestido de ramagens tem um chilique, mas o actor chega junto aos dois no momento em que o Villaret agarra meu pai pelas bandas do casaco... leva imediatamente um murro. Villaret para um lado, meu pai a agarrar o Carlos, o sinaleiro a apitar a chamar socorro da esquadra próxima, o ajuntamento clássico na baixa lisboeta… Param os Restauradores porque um homem deu um murro noutro que estava agredir um terceiro… E a carroça das cerejas lá segue a meio do Rossio.

Quando se desfez o equívoco e foram beber uma imperial ao Leão d'Ouro … o Villaret não parava de rir, mas meu pai comoveu-se com a amizade incondicional do saudoso Carlos José Teixeira. Pagou o Villaret...

"E por vezes"

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira (1927 - 1996)

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