Eram quase sete da tarde. Uma tarde quente de Verão magrebino de Lisboa, com carros eléctricos, automóveis, táxis, uma carroça com cerejas, ardinas almorávidas que apregoam jornais, o sinaleiro impecavelmente fardado no seu palanque… Sete da tarde nos Restauradores.
Começavam a passar as costureiras, os caixeiros, os escriturários.
Junto aos telefones, meu pai encontra o Villaret. Abraço, conversa "que é feito do Carlos?" "Está p’ra África, sei dele porque sou médico do pai". Villaret começa a contar-lhe uma anedota comprida que mete uma cena de pancadaria. Entusiasmados, não se apercebem que na esquina do teatro Nacional se prefigura o Carlos que observa a cena. Conclui que o outro está a agredir meu pai, não reconhece Villaret que está de costas e há muita gente a passar. Não pensa duas vezes. Atravessa pelo meio dos carros, trava o eléctrico que guincha nas bielas e mecanismos, gemem travões e pneus, ouvem-se impropérios, o sinaleiro desce do pedestal a apitar sem parança, há gritos, a senhora de vestido de ramagens tem um chilique, mas o actor chega junto aos dois no momento em que o Villaret agarra meu pai pelas bandas do casaco... leva imediatamente um murro. Villaret para um lado, meu pai a agarrar o Carlos, o sinaleiro a apitar a chamar socorro da esquadra próxima, o ajuntamento clássico na baixa lisboeta… Param os Restauradores porque um homem deu um murro noutro que estava agredir um terceiro… E a carroça das cerejas lá segue a meio do Rossio.
Quando se desfez o equívoco e foram beber uma imperial ao Leão d'Ouro … o Villaret não parava de rir, mas meu pai comoveu-se com a amizade incondicional do saudoso Carlos José Teixeira. Pagou o Villaret...
"E por vezes"
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos