Home »
01 MAR 2017
ALFARROBEIRA EM NEVOEIRO
Por Jornal Abarca

Alverca, 20 de Maio de 1977

 

Estranha coincidência. Terá sido por aqui mesmo (Ribeira de Vialonga) que nesta data, em 1449, baixou um denso nevoeiro que até hoje não levantou. E talvez nunca levante sobre a Batalha de Alfarrobeira.

Sabe-se que o Infante D. Pedro e o sobrinho, D. Afonso V, andaram por aqui num dos primeiros episódios sangrentos de guerra civil em Portugal. Acabou com D. Pedro trespassado numa valeta. Um episódio, talvez o mais trágico da nossa história (como Herculano tanto lamentou, pena nunca fosse posto em verso ou teatro), para lá da rainha ungida depois de esqueleto, a decantada tragédia de Inês de Castro, digna do Liebenstod de Wagner

E, no entanto, o palco teve personagens dignos de Shakespeare – de um lado, um dos nomes mais fortes da Ínclita Geração, talvez quem primeiro sempre teve uma visão europeia de Portugal e da necessidade da centralização do poder da Coroa: o Infante D. Pedro. Do outro, outro tio do jovem rei e meio-irmão de D. Pedro, Afonso, Conde de Ourém e 1.º Duque de Bragança que veio a ser sogro do Condestável, Nuno Álvares Pereira.

Fosse ou não fosse por sofrer dos complexos de filho bastardo de D. João I, sabe-se que espalhou todo o tipo de calúnias e conjuras contra D. Pedro. Não era de admirar - quando este é regente durante a menoridade do sobrinho, D. Pedro tenta disciplinar as regalias da Nobreza e da Igreja, controlar o orçamento real, cortar as unhas a bom eito mas não bom efeito. Sabe-se: poucos dias depois de Afonso V assumir o trono, as leis emitidas por D. Pedro são todas revogadas, o Infante cai em desgraça e parte magoado para Coimbra. Mas não é o suficiente – o Duque de Bragança, apoiado por parte do clero e da nobreza, convence o sobrinho que o meio-irmão vai organizar outra conjura para derrubar o rei e este é aconselhado a intimar D. Pedro para que venha à Corte prestar vassalagem -  um simples pretexto para o prender.

D. Pedro sente-se injustamente atingido, jura ser fiel ao sobrinho, mas vem para Lisboa com as suas forças para se explicar. Não chega a haver explicação alguma - tudo acaba num banho de sangue às portas da cidade. Até aqui, sabe-se o que se passou. O que até hoje não se entende, é o resto.

Para já, não deixo de pensar senão é um vício de cromossomas portugueses. Apenas 64 anos depois de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385), mal arrumada a casa, andamos à garrafada no quintal nacional, por conta de questiúnculas e invejas, o que seria de encolher os ombros senão acabasse em mortes. Afinal em Aljubarrota, D. João I suou como poucos para manter Portugal independente e ainda foi preciso o Condestável ter ido primeiro mandar os espanhóis dar meia volta em Atoleiros (1384) e Valverde (Outubro de 1385). Mais: na verdade, ainda nos últimos anos de D. João I e breve reinado de D. Duarte já tínhamos ido a Ceuta (1415) e deixámos o pobre do D. Fernando morrer em Marrocos (1443).

Tudo somado, nada mais lógico do que não andar agora, menos de seis anos depois do pesadelo de Fez, à pancadaria aqui no burgo. Mas não, tínhamos que afiar as facas de novo. Para quê?

Pode parecer pergunta do Borda d´Àgua mas não o é.

A grande diferença fica por conta de um ausente - o grande ausente-, quem, certamente, esteve na cabeça de todos os que forjaram, espalharam, reagiram e lutaram em defesa e contra as calúnias.

Até hoje, tanto quanto sei, não se encontrou nem um documento que nos diga o que pensou, fez ou disse, sendo além do mais, irmão de sangue de um interveniente, meio-irmão de outro e tio adorado do próprio jovem rei. E Mestre da toda poderosa Ordem de Cristo. 

Porque ficou o Infante D. Henrique num silêncio tumular de faraó egípcio, sem mexer uma palha, sem fazer um gesto, sabendo muito bem o que se ia passar?

Se os historiadores batem neste muro e se descabelam por não terem resposta, não é por isso que não valem hipóteses que fazem sentido – Damião Góis, Herculano, Oliveira Martins, António Sérgio que o digam. Seria que D. Henrique já tinha de alguma forma manobrado as frustrações do meio-irmão Afonso (como se dizia na época, “filho bastardo é sempre um cardo”),sabendo do perigo que constituia a inteligência de D. Pedro, mais a mais por ser contra gastar tanto dinheiro naquele “disparate” de navegar costa africana abaixo, porque bem vistas as coisas, o futuro estava na Europa?

Ou porque fosse quem fosse que se aleijasse a sério, num bom exemplo do “Príncipe” de Maquiavel, o Infante D. Henrique, só teria no fundo a ganhar com esse viciado dolce fare niente?

Se fosse o sobrinho que fosse desta para melhor, ganhava D. Pedro, fechavam-se alguns taipais na poderosa Casa de Bragança, mas iria abrir-se uma crise nacional de todo o tamanho. E se não o matasse, ia desterrá-lo? Iria D. Pedro assumir o trono?

Se assumisse, passava a ser o sucessor por ser o filho mais velho de João I e por D. Afonso V ainda não ter filhos, mas verdade se diga que o retrato que nos chega de D. Pedro não aponta para tal tipo de ambições até porque iria ter contra si o resto da Nobreza e do Clero. Mais do que nunca iria precisar da ajuda do próprio irmão, o Infante D. Henrique. E este naturalmente poderia cobrar “o seu preço”.

Se ganhasse o sobrinho (como ganhou), D. Henrique teria o caminho aberto para enfunar as velas a caminho da Guiné e mais além, até porque o juvenil Afonso V, o que queria era glória ali mesmo no norte de África, ao pé de casa. Ao que parece, achava uma certa piada àquela história de Sagres, mas nada que lhe tirasse o sono.

Seja como for, a vingança não demorou por aí além – seis anos após Alfarrobeira (1455), nasce o filho de Afonso V, de seu nome D. João II.

Príncipe ou não Perfeito, para além de odiar a intriga palaciana e clerical, viu muito bem onde os falecidos tio D. Pedro e meio-tio D. Afonso, tinham querido chegar. Encarregou-se de cortar as unhas da Nobreza e da Casa de Bragança a partir de 1481. Até ao sabugo. A começar por mandar cortar a cabeça do próprio chefe da bragantina casa. Foi preciso chegar a 1640 para a Casa de Bragança voltar a levantar a crista.

Mas nada dissolve este denso nevoeiro que continua a pairar sobre Alfarrobeira. Uma coisa parece certa – a divisa de D. Henrique, talent de bien faire, aplica-se muito bem mesmo.

Aliás, muito melhor, do que se pensa à primeira vista. Il a três bien fait, sans doute

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
Sim
Não
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design