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01 MAI 2017
BÊNÇÃO COM MÃO DIREITA,
SEUS BARBUDOS PERIGOS E FINAIS FRUSTRAÇÕES
Por Jornal Abarca

Belgrado, Sérvia, Maio de 2002

Beogradou Belgradoé uma capital estranha num estranho país. E como tal, ambos me fascinam, e como! Dificilmente fiz tão bons amigos como por aqui; muito raro aprender tanto sobre lições de vida, música coral, literatura e poesia como nestas bandas. A Sérvia é país sem aguarelas, tudo quadros a óleo forte, o drama é decálogo por tradição, tudo olhos nos olhos, nisso bem mais genuíno do que no nosso quintal de narinas enfiadas nas ondas, justo é dizer.

No mapa da antiga Jugoslávia (Eslovénia, Croácia, Montenegro, Bósnia-Herzegovina, Kosovo, Sérvia), de que só resta esta última, Belgrado é um burgo tão antigo como o de ter nascido na pré-história como menina sorridente à beira do namoro de dois rios da Europa Central (Danúbio e Sava) que ali babujam sempre o encontro e depois alinham o caudal de noivado para bem longe, para a foz do mar Negro, no maior delta europeu.

E o que há no meio disso tudo? Os Balcãs, um corredor que começa no sul da Polónia até à fronteira da Bulgária com a Turquia, uma enorme faixa de passagem milenar, sempre retorcida, sempre em brasa, onde civilizações e exércitos se atafulharam com tanta frequência como quem vai à praça aviar batatas e cebolas – atenienses, espartanos, beócios, macedónios, Alexandre o Grande, romanos, hunos, bizantinos, turcos, 1ª e 2ª Guerra Mundiais, tudo polvilhado com dezenas de guerras locais ou civis.

Isso para não falar da Religião Ortodoxa, bem mais severa e rigorosa que a grega ou a russa; nada de imagens, tudo iconizado e sem espinhas, santos, Cristos, Madonas espalmadas, nada de relevos, sombras ou duas dimensões, afinal os católicos são meio-renegados, mudaram a Verdade Divina por conveniência, sabe-se que Jesus nasceu a 6 de Fevereiro nunca a 25 de Dezembro, e a Páscoa mais ainda. Mas quanto aos luteranos, batistas, ecuménicos, Igreja de Inglaterra, essa escumalha toda, nem vê-la! Lutero, Calvino, Hus, Henrique VIII, Knox deviam estar agora empalados num espeto, a berrar o suplício infernal e eterno, tanto quanto os inquisidores espanhóis, italianos e portugueses, fogo paga-se com fogo (Plamen vatre, plac%u0301aju sa plamenom vatre).

Heranças e marcas? Ah, isso é por todos os lados: panos de muralhas romanas, medievais (sabem que o nosso D.Pedro, filho de D.João I, andou por aqui e ganhou o título de Conde? Um dia, conto), renascentistas, venezianas, otomanas; a presença turca de quase 500 anos; o perfil arquitetónico do casario  envidraçado austro-húngaro que lhe sucede; igrejas de abóbodas e pináculos em forma de pera, rigorosas no traço e na inevitável cruz de braço descaído; placas, jornais, cartazes metade em escrita cirílica, metade no correspondente ocidental (%u0414%u0443%u043D%u0430%u0432, Dunav= Danúbio); tudo remexido comm´il fautpela sombra de Tito, cara cheia de camponês das montanhas, peito cheio de medalhas generalíssimas, mais o seu socialismo independente de Moscovo; mas após a sua morte, como era de esperar, a implosão de instabilidades político-militares tantas ou tão poucas que levaram à guerra da Bósnia – Herzegovina.

E veremos o que não possa vir por aí – um dos meus amigos, professor de História da Universidade daqui, disse e com razão, que é raro um período de mais de 50 anos que não haja um novo capítulo de hostilidades internas pela reunificação ou separação dos fragmentos étnico-sociais da ex-Jugoslávia.

Seja como for, aqui estou mais uma vez, a trabalho. Depois de uma semana cheia de reuniões, contratos, mentiras de sorriso descarado, prometo-hoje-o-que-nego-amanhã, chega! Aproveito o sol, saio do hotel, estico as pernas com gosto, vou até à fortaleza, de cujo alto se vê o esplendoroso encontro do Danúbio e do Sava. Nunca o vi com detalhe e os meus amigos sérvios avisam com um sorriso que em Maio, o encontro dos rios é “um espelho que desliza com dois braços”. A meio caminho, vejo a Catedral Ortodoxa de Belgrado que toca o seu sino. Ah, sim, a catedral – nunca cá vim, dizem ter um ícone de Maria, Mãe de Deus, Senhora do Sorriso do Perdão,  Escola Russa,  século XIII, farta fama de fazer milagres. Vejo magotes de famílias a entrar. Ah, claro é domingo...! Já que estou meio atrasado nas obrigações divinas, afinal somos todos cristãos, a mesma Bíblia, os mesmos santos, entro e benzo-me como sempre me ensinaram.

Um padre ainda jovem, ossudo, barba cerrada e longa, batina preta sem botões e que observa e fiscaliza quem entra, fuzila-me com os olhos, aponta-me com o dedo e grita-me:

- Iza%u0111i odavde! Iza%u0111i!

Izadi, Izadi odavde…, o meu sérvo-croata não é famoso, masse não estou em erro, izadié expulsar, mandar embora, não posso entrar ou estar aqui. Mas porque não? Peço desculpa, falo em inglês e pergunto delicadamente porque me manda embora, tenho que usar gravata?

- Você benzeu-se com a mão direita! E apenas 1 vez, em vez de 3! Mas que tipo de crente ortodoxo é que pensa que é?

- Não sou ortodoxo, sou católico.

- Então saia, Iza%u0111i odavde!, Saia daqui! Esta catedral é só para ortodoxos, para os que veneram o verdadeiro Cristo!

E empurra-me sem contemplações, para a porta. Fico atónito - já entrei em sinagogas, igrejas anglicanas, metodistas e batistas e ninguém me pôs na rua. Sempre quis apenas dialogar com Deus e isso bastou. E é aqui, com os nossos primos mais próximos, que me passa uma destas?

Quase que tropeço escadaria abaixo, meio aturdido enquanto aquele tipo eriçado e furioso de Rasputine continua lá em cima, tipo de Orlando Furioso, a agitar a batina preta e a barba enrolada, esbraceja, dedo espetado, olhar mortífero (e de metralhadora pesada…), feito Jesus a expulsar os vendilhões do templo. Nem acredito!

Aproxima-se um casal jovem, ouviram o que se passou e pedem desculpa - o padre é novo, nunca o viram na catedral, deve estar perturbado com alguma coisa, talvez esteja doente? Ou tem a mãe muito doente? Tentam conversar com ele. Pior a emenda do que qualquer soneto - são também varridos de proa à ré, apóstatas!, traidores da fé, o inferno está à vossa espera!  A mesma receita para outro casal de meia-idade que tenta a sua sorte, todos varridos, fariseus!, arrependam-se de estarem a defender um filho do diabo!  Mais do mesmo, sem mais nem menos  para um senhor idoso que desiste e depois me põe a mão no braço, repete em jeito de desalentado conforto:

- É uma vergonha…

Junta-se uma pequena multidão meio escandalizada. O que fui fazer! O melhor é ir-me embora, digo para não se preocuparem:

- Deixem estar. Vou procurar outra igreja, não estraguem mais o vosso Domingo!

Qual o quê!, mais pimenta na fogueira - o padre ouviu e ainda fica mais irritado, leva aquilo como um desafio, uma desautorização, uma ofensa, veem como ele é mesmo filho do Diabo?Eu te esconjuro Belzebu!  Bolas, é demais, hoje é só duques, saiu-me, só queria mencionar outra igreja, das nossas, deve haver uma igreja católica em Belgrado, não? Ou é pecado?

Vou-me é embora. Nem demasiado lento para ele não pensar que era uma provocação, nem demasiado rápido para não se dizer que estava a fugir. Sinto nas costas alguns pares de olhos envergonhados e compadecidos. Esqueço o encontro dos rios, missas, igrejas, entro numa esplanada, peço uma água tónica, apanho o meu Diário e anoto esta mini-novela ortodoxo-barbuda, olhem, que se lixem todos!

Pensei que ficava por ali. Mas não ficou, se o mundo é pequeno, Belgrado ainda o é mais. Alguém me viu, soube da história. No dia seguinte, foi uma romaria de colegas no gabinete, a pedir desculpa. Alguns tinham até apresentado queixa ao Patriarca Metropolitano Ortodoxo e este queria falar comigo, desculpar-se em nome da catedral. Claro que não era caso para tanto, coisas que acontecem. Soube depois que o padre pertencia a um grupo ultraconservador, que já dera azo a outros incidentes. Ao que parece aquela foi a gota de água e o padre foi acalmar os ânimos e mastigar o ázimo de ervas amargas para o mosteiro de Cetinje, no litoral de Montenegro.

Sacana do gajo! Ele é que foi premiado, no final da história? Já tinha visitado o mosteiro, um edifício esbelto, bem conservado, com vista esplendorosa sobre o Adriático, diziam as más-línguas que os alemães estavam a pensar transformar parte, num hotel de luxo. Nada mau como desterro – por mim, oferecia-me como penitente a precisar de urgente resgate divino, só precisava de saber como era o pequeno-almoço, se tinham TV a cabo para ver a RTP Internacional, mini-bar com água tónica, internet, cigarros extra-longos, e poder alugar um carro pequeno para enfiar o nariz em tudo o que eram cercanias, enfim um mínimo de civilizada sobrevivência. Mas nicles, o barbudo Rasputine Orlandesco é que ganhou a rifa!  

Seja como for, vejam bem o que faz uma pessoa benzer-se com a mão direita!

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