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01 AGO 2017
AMÁLIA
Por Jornal Abarca

Washington, 8 de Outubro de 1999

Leio que morre Amália.

Para já, uma dose dupla nada fácil de engolir - depois do coração à solta na luta pela independência de Timor, fico-me a perguntar se em Portugal não esgotámos de momento, a capacidade emocional que nos ameaça as costuras de vez quando.

Lembro-me bem da viagem na TWA que com ela fiz, ombro a ombro, de Nova Iorque para Lisboa. Final dos anos 80, penso que viria de um espetáculo qualquer em New Jersey e eu ia para reunião com o Banco de Portugal. Anunciam o embarque e como de costume, sou o primeiro a entrar na Business Classe escolho um assento do lado da janela – um dos poucos confortos de viajar em trabalho.

Amália vem pouco depois, à frente dos guitarristas e da secretária que vão para a classe turística. Só ao olhá-la de frente a reconheço, olha, a Amália! E vai ficar a meu lado! Meu rico Santo António, não te pedi este milagre mas obrigado de qualquer maneira.

Amália pede-me em inglês se me importava de mudar de lugar para ela ir à janela, porque assim sempre encostava a cabeça numa almofada e podia passar pelas brasas.

- Com certeza.

- Muito obrigada.

Mudei de lugar e sorriu agradecida, mais a mais porque, pelos vistos, eu também era da casa.

Foram 7 horas e tal de viagem que não esqueço – Amália não passou pelas brasas e eu claro, jamais o faria, uma sorte. A desconhecida grande senhora, não se fez de meias medidas - com a maior naturalidade, tagarelou, pintou uma grande aguarela da sua nem sempre simples forma de ser. Pouco lhe perguntei porque fez gasto da conversa a seu belo prazer, entremeada apenas pelas idas e vindas da secretária-enfermeira que vinha dar medicamentos ou perguntar se queria qualquer coisa.

- Sabe?, cantar Camões foi um senhor desafio…

Por mais que tentasse evitar, viu-me um gesto impercetível de dúvida:

- Não concorda em ter cantado Camões?

Noblesse oblige, disse o que pensava:

- Bom, só a senhora o podia cantar, mas sinceramente não achei que fosse preciso…

- Por favor, não me trate por senhora.  E porque pensa assim?

- Repare, cantar versos seiscentistas de sonetos impecáveis, exigia música muito, mas mesmo muito a condizer com tal perfeição. A letra está já há muito emoldurada em ouro na nossa literatura, a sua voz, claro, a condizer, mas a música…

- … a música ?

- Não trouxe nada de novo. Esmorecida – nem fado, nem balada, ficou num meio tinteiro. Não adiantou nem ao que a senhora, desculpe… ao que D. Amália, já tanto cantou da nossa terra e gentes, nem ao que Camões escreveu. Há certas coisas intocáveis…

Vi que meditava no que dissera. Talvez tivesse ido longe demais:

- Desculpe a franqueza…

- Não tem nada que pedir desculpas. Por vezes penso isso mesmo- todos nós temos limites. Mas olhe, foi na melhor das intenções.

- Ah, disso não duvido…

-…mas de boas intenções está o inferno cheio, não é?

Como era de prever, conhecia bem as linhas mestras da alma portuguesa, pelo menos quanto a ditados.

- Acho que o inferno estará demasiado ocupado para ir agora lançar os sonetos de Camões para os caldeirões…Sobretudo quando os pecados – se o foram –, nada passam senão uma questão de gosto. Do “meu” gosto, repare, não do gosto de mais ninguém. Se calhar quem cometeu pecados fui eu. Só espero que sejam veniais…

Rimos, sobretudo ela que soltou uma meia gargalhada, talvez porque se sentisse aliviada à sua maneira. Mas a Senhora Dona Curiosidade bateu logo à porta:

- Desculpe, é padre? Ou seminarista ?

Foi a minha vez de me despregar,

- Deus me livre! Sou advogado e nas horas vagas ensino Direito… Olhe, estou muito mais próximo da Luciferina criatura do que a D. Amália…

Sorriu. Fez-se silêncio, só interrompido pelo sibilar do ar condicionado e do jantar. Comemos sem comentários, enquanto a secretária/enfermeira de Amália trazia a dose de comprimidos que deveriam ser tomados nessa altura.

- É a dedicação em pessoa…

Concordei. Pequena, vestida de preto, fugidia, era uma presença constante a proteger e defender Amália. Mas depois de umas 2 ou 3 “inspeções” visuais, acho que se sentia tranquila a meu respeito. Parecia ser uma pessoa indispensável dos bastidores – mais uma delas.

Chegou a noite e porque tinha frio e depois calores, Amália pediu-me duas ou três vezes para tirar e depois pôr de volta o casaco de peles da bagageira, como se fosse xaile para ir cantar o fado.

E até cantou.À sua maneira - sem me conhecer, foi um torrencial a falar de si, de ser portuguesa no estrangeiro, de continuar a ser portuguesa em Portugal, de como sentia já falta de voz, de como…

- Sabe? Por mais que tente, fica sempre um fado por cantar.

Pensei para mim mesmo que só conheci outra pessoa tão portuguesmente embrionária quanto aos cromossomas. Foi aliás a única vez que lhe perguntei alguma coisa:

- A Dona Amália já cantou Torga?

- Não, mas ainda hei-de cantar.

Se o fez, não sei. Falou vagamente em António Nobre, Antero e claro, Florbela. Sei que era já meio alvorecer quando afinal se aconchegou para fechar os olhos na semi-escuridão da cabine. E disse-me como se fosse amigo de família:

- Sabe? O pior de sermos tão portugueses é chegarmos ao ponto de ter saudades de não as ter.

Embatuquei. E ainda o estou.

De uma limpidez cristalina, esta nem Torga o escreveu, que me recorde.

Amália afinal nem precisava de cantar para saber uma das maiores verdades sobre ser Português.

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