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01 AGO 2017
Dar para receber
Por Jornal Abarca

Olha ali como ela espera que a filha acabe para poder comer”, diz-me a pequena de olhos cor de safira na plenitude da sua ingenuidade. Em breve irá crescer e perceber que apenas os animais, como os gatos que ela adora, guardam eternamente esse instinto maternal.

É comum ouvirmos dizer que “ela não tem jeito para ser mãe” – ou o mesmo em relação aos homens – mas é muito raro ouvirmos isso em relação aos animais. Têm instintos, há quem lhes chame básicos, que os fazem proteger as suas crias.

Há teorias que explicam que o que distingue os animais das pedras é o facto de respirarem e, justificam as mesmas, que o que nos distingue dos animais e das pedras é o facto de pensarmos. Tenho sérias dúvidas, perdoem-me, que os animais sejam seres ocos de raciocínio. De sentimentos, garantidamente, não são.

Olha ela a dar banho à filha”, ouço enquanto vejo os olhos brilharem como diamantes. Isto deveria fazer-nos pensar sobre o suposto racionalismo que nos distingue dos animais.

Porque, como me disse um amigo, “há pessoas que nem para animais servem”, com toda a elevação que estes me merecem. Os títulos que vejo nos mediadeixam-me arrepiado: “Mãe deixa filho fechado no carro em tarde de calor”; “Pai abandona filho deficiente que ninguém quer”; “Mulher vinga-se de ex-marido matando-se com os filhos de ambos”, numa lista sem fim.

Ao contrário do que possa parecer, este texto não é sobre animais. É sobre humanos. Eu é que sinto uma vergonha alheia quando falam dos animais como se nós fossemos exemplos de virtudes.

E não há nada pior no mundo que um progenitor que não sabe cuidar de um filho. Que não lhe sabe dar valor, dar-lhe armas para crescer e vê-lo, de poltrona, ter sucesso. Porque, no fundo, será sempre o seu maior legado no mundo.

Dói, garantidamente, um filho ficar sem aquele que deveria ser o seu herói ainda que o veja, mas não o sinta. Fazer o luto de alguém que ainda vive é das experiências mais complexas e cruéis que um ser humano, por vezes uma criança, pode vivenciar. Alguns dirão que crescem mais fortes, eu tenho a certeza que crescem incompletos, como navegar numa canoa sem um remo e por mais que puxemos pelo outro a canoa não pára de andar em círculos sem sair do mesmo sítio.

A ausência pode ser, no entanto, a base para fazermos diferente e amarmos o próximo: “Nada a não ser este silêncio tenso / que faz do amor sozinho o amor imenso”. Como as palavras de José Carlos Ary dos Santos, resta aos filhos de pai sem alma pegar no silêncio e na solidão e criar harmonia à sua volta.

Olha, ela foi dormir para o pé da mãe”. Claro, minha pequena. É assim que o amor funciona: dar para receber.

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