Home »
01 MAI 2018
A obra de arte
Por Jornal Abarca

Era pintor. Todos os anos ia aquela exposição variada, ou não fosse o local uma escola de Arte onde se mostrava tudo: pintura, escultura, colagem. Morava longe de Lisboa, foi de combóio, e por isso chegou cedo e a casa estava vazia. Sentou-se num banco a ler o livro que sempre levava para entreter as horas de espera. Estava frio, chovia miudinho.

A pouco e pouco veio chegando gente. Andaram por ali... Até que alguém descobriu uma peça encostada ao rodapé da sala onde ele estava. Uma pessoa chegou-se curiosa do que atraia a atenção da outra. E vieram outras e outras... Ficaram a olhar embevecidas a obra de arte e imaginação que ali se mostrava. Ele achou que lhe tinha passado desapercebida tal maravilha e intimamente não se perdoou. Estava cansado. Apanhar o combóio àquela hora, a viagem, o autocarro até ali... se calhar até estava a ficar velho... Deixou juntar mais gente, ele até era bem conhecido e se descobrissem que não dera pela obra singular seria um desonra, enfim um desprimor... Que coisa esquisita.

Ia-se juntando povo. Alguns saudavam-no... Pior...

Um veio mesmo perguntar-lhe o que pensava, acrescentando para seu descanso momentâneo que a juventude estava sempre a inovar. Respondeu-lhe que era por isso que ali ia todos os anos, mas sem alma. Que vergonha!

Entretanto, chegou a hora da abertura da exposição. Um grupo de senhores bem vestidos ficaram a conversar na entrada. Falavam alto, riam...

E inusitadamente apareceu uma senhora gorda com uma esfregona na mão e uma multidão de ganchos nos cabelos oleosos, muito corada e atrapalhada. Pediu licenças, licenças para conseguir atravessar a multidão e... apanhou o papel amarfanhado junto ao rodapé... que lhe valera uma descompostura valente.

O pintor deu uma gargalhada.

Nunca mais foi a essa exposição.

 

SONETO DO AMIGO


Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Vinicius de Moraes 1913-1980

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
Sim
Não
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design