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01 JUL 2018
O Professor
Por Jornal Abarca

Alguns dirão que advogo em causa própria, visto ter escolhido a profissão de professora, ou antes, ter abraçado o que vai muito além de uma profissão e nos torna igualmente missionários. Contudo, considero que a minha admiração e reconhecimento pelos meus professores, em geral, enquanto educadores e até, pontualmente, amigos e por este professor, em particular, existiriam ainda que não exercesse esta profissão, pois ainda aluna assim pensava.

Sem desmérito para os restantes professores, tive-os excelentes em todos os ciclos, e tirando uma ou outra exceção que apenas confirmará a regra, saliento um. Atente-se que, felizmente, sempre frequentei a escola pública.

Trata-se de um professor que, sendo antigo ex-seminarista jesuíta, pautava as suas aulas e exigia aos seus alunos uma rígida disciplina, quer ao nível dos comportamentos, quer quanto aos conhecimentos. Não obstante, e porque estas disciplinas para serem bem lecionadas têm obrigatoriamente de incluir muitos parênteses, tinha connosco, alunos, conversas que ultrapassavam as matérias, os conteúdos linguísticos, gramaticais e literários e oscilavam entre várias áreas, desde sociais, políticas, éticas, religiosas e até pessoais.

Este acompanhou-me no meu ensino secundário a duas disciplinas cumulativamente: Português e Latim, sendo que nesta tínhamos aulas de língua e de cultura. Acrescento que a Latim, no décimo segundo ano, éramos uma turma de quatro raparigas o que permitiu um grupo muito coeso, solidário, descontraído e íntimo. A intimidade permitia desabafos, comentários e confidências de aspetos que muitas vezes, na época, constituíam autênticos dilemas. Para cada dúvida ou dificuldade havia sempre um exemplo de vida, um conselho, um apoio ou, pelo contrário, uma dissuasão.

Passei então a admirar este homem que, prestes a chegar à idade da reforma, afirmava que, enquanto Deus lhe desse capacidade física e mental, continuaria a exercer, pois amava a sua profissão. Além disso, acumulava as aulas na escola pública com outras no privado, saindo à pressa de umas, a pé, não usava o carro, com a sua pasta, para se deslocar da escola Maria Lamas para o colégio, quem conhece sabe que fica longe e num caminho sempre a subir, lá ia dar as suas outras aulas. Devo advertir em minha própria defesa e dos meus colegas coetâneos (não querendo menorizar o seu esforço) que hoje, certamente, tal seria temporal e humanamente impossível, pois as reduções de horário devido à idade e outras circunstâncias profissionais foram de tal modo alteradas que atualmente a carga horária e de outras tarefas é indiscutivelmente maior.

Várias vezes o recordava, passadas décadas, ou por ver um seu artigo na imprensa regional, ou porque algum conhecimento ou expressão dele emanado vinha à memória, ou ainda por falar dos tempos de escola com outros ex-alunos do professor.

Passaram cerca de 30 anos e eis que, por mero lanço do acaso, entre uma secção e outra de um supermercado, avisto a sua figura – igual. Mais velho, claro, mas apenas nas cãs mais pronunciadas e nas rugas em maior número. Mesmo olhar azul vivo. Abordei-o, identifiquei-me, recordei a turma e fez-se luz. Recordou não tanto a aluna, mas a turma, e, de repente, parecia que o tempo tinha saltado para o passado. A sua expressão ficou idêntica, a sua conversa voltou ao mesmo informalismo. Entrámos no tom confessional de velhos amigos que a vida separou e, num resumo brutal, atualizámos o parceiro de vicissitudes das vidas de ambos.

Este imprevisto maravilhou-me não só por rever uma pessoa querida, há muito afastada, mas por ver um ser humano que já reputava além de único, como todos o são, extraordinário e que agora acrescentou, facto que parecia impossível, os seus méritos. Soube fazer da idade e dos desgostos, que também os teve, oportunidades e estava feliz!

Recordando os tempos de professor sobressai a expressão “Sempre gostei dos meus alunos!” e deste encontro fortuito saliento o bom aspeto, saudável, dinâmico e pleno de vida.

Do falecimento da esposa, companheira amada de longo caminho, fez o luto, mas agarrou-se à vida. Mais tarde, apareceu-lhe uma ex-aluna 30 anos mais nova, mero pormenor quando se trata de dois adultos e a mente é aberta, que admirando-o e tendo-lhe amizade, se aproximou passando a ser uma companheira. A propósito desse reencontro disse-me que tinha pensado “Os deuses devem estar loucos!”, foi a alegria a reentrar na sua vida. Referiu que quando comentam a sua boa forma e lhe perguntam a receita de tanta vitalidade e jovialidade, responde que o elixir para a juventude é o amor.

Em suma, este professor e um livro de cultura clássica da biblioteca municipal, que na época era longe da escola, e também num caminho penoso de subida íngreme junto ao castelo, lido sempre que a falta de um docente permitia a ida à biblioteca para ocupar o tempo, marcaram enormemente o pouco que julgo saber da cultura greco-romana. Um exemplo imediato foi, precisamente, a expressão que dá o cunho a estas crónicas e com a qual tento pautar a minha vida, sempre que consigo… - o Carpe diem horaciano. No entanto, esta foi apenas uma parte dos conhecimentos transmitidos e muito mais importante que estes foram as lições de vida que me ensinou no passado e que, com este reencontro, me voltou a dar. Como? Da melhor forma possível – pelo exemplo!

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