Duas criações humanas sempre me maravilharam: os relógios e os veleiros.
Os veleiros, construções de pau e corda no dizer pragmático e romântico do meu pai, continuam a deixar-me perpexa. Pau e corda! E dentro deles os homens singram mares de humores inesperados e quantas vezes brutos e ferozes. Pau e corda! Aproveitando o vento. Até parece simples.
Os relógios, de interiores minúsculos e misteriosos, complicadas simbioses de rodinhas dentadas que o Fonseca espreitava e manobrava por um tubo prosaicamente instalado num olho e ferramentas diminutas. Ou grandes e solenes, badalando circunspectos as horas todas, muitas vezes repetindo a dose para que não haja dúvidas. Pau e crinas de cavalo.
A menina, que rompia em choro quando se apertava o botão do palhaço que desatava em gargalhadas, não gosta de badaladas. Assim, o relógio grande ficou mudo e quedo durante muitos anos. Mas também o relógio é sensível. Noutros tempos, sempre que o dono se ausentava ele parava. E nada nem ninguém o conseguia fazer funcionar. Voltava ao seu labor rigoroso com a presença do dono. Foi sempre tão misterioso como os veleiros. Calhou em herança à mãe da menina que nunca conseguiu que desse horas. Até que o antigo dono morreu. Longe, o relógio quedo. E vieram relojoeiros que o observaram, verificaram as peças e diagnosticaram velhice. O relógio estava bem, um milagre para uma complicada peça tão antiga. Isto é, o relógio não funcionava porque não queria.
E nunca mais deu uma badalada, o pêndulo quieto. Durante muitos anos.
Ao fundo do corredor, na sua solenidade comevente, o relógio grande esteve parado mais de vinte anos para desgosto da sua dona que sinceramente o estimava.
Mas a menina foi fazer uma viagem. A dona do relógio, teimosa no seu desgosto pelo silêncio do relógio, mais uma vez lhe deu corda e esperou que parasse como era o costume da sua sensibilidade. E, para seu gande espanto, o relógio decidiu que o luto terminara e voltou a trabalhar saudando as horas com badaladas surpreendentemente alegres.
Ah! Os Relógios
Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...
Mário Quintana (1906-1994)