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01 JUN 2018
BEETHOVEN - HORA DE CULTO - 1
Por Jornal Abarca

Viena, Operahaus, 26 de Março de 1978

Dia histórico - 151º aniversário da morte de Beethoven (26 de Março de 1827). Sorte das sortes, nunca pensei que viesse aqui assinar o ponto – desde o ano passado que Viena inteira celebra a data em honra do Mestre (e para gáudio financeiro da Filarmónica de Viena e das gravadoras, vamos de coisas) com a série completa de todas as obras. Salas há muito esgotadas de antemão, um mês de récitas, recitais, concertos, sonatas, quartetos, aberturas, coros, danças alemãs, lieds, uma avalanche gloriosa que sabe sempre a pouco. E a joia da coroa (para alguns) é a que fecha hoje o festival - a IXª Sinfonia, opus 125, dita “Coral”.

Quase duas horas antes do início do concerto e já se enche o largo em frente da Operahaus, à espera de serem abertas os portões dourados com anjinhos barrocos a servir de pegas, um mimo. Tem o seu quê de assembleia geral da ONU - alemães, holandeses, suecos, franceses, ingleses, italianos, compartem bem os donos da casa que comparecem a preceito – eles de chapéu de feltro verde com peninha enfiada na lista e suspensório de couro; elas com vestido arredondado de flores, coberto com avental arrendado e também de chapeuzinho a meia nau. Não se esqueça um sucinto grupo nipónico que vai tirando fotos a tudo o que se mexa ou pode vir a mexer.Que mais…? Ah, sim, uma soturna delegação russo-soviética, ainda com emblemas dourados de foice e martelo nas lapelas, e um grupo de sauditas  com túnicas e véus de tule branco, teshbi (terço mulçumano) na mão, a rodar as contas de âmbar em louvor a Allah. Resta saber se o Profeta gostaria de música repulsivamente cristã, mistério que me persiste nesta brisa fria de primavera. E até das pampas argentinas há quem venha prestar tributo na onda de estarem todos muy emocionados y de vibrante corazón que se comparte com toda la Humanidad que se comprazem em repetir, olhando à volta a ver se alguém os ouviu, não trouxeram bandeirinha na mão por simples acaso.

Por um milagre que ainda hoje agradeço aos deuses, consigo um bilhete no mercado negro, mas vá lá, não é falsificado, do mal o menos, embora a carteira fique a arder, vou ter amanhã que sobreviver no MacDonalds e esquecer as delícias de um wiener schnitzel, que se há de fazer? Embora vá ficar alcandorado no sumapau das bancadas do topo dos topos neste galinheiro dourado que é a Operahaus, o que me vai fazer doer os joelhos e as bochechas carnais onde o corpo se senta, que se lixe, não vou esquecer isto, mais a mais porque antes de ouvir o Luwig van, é delicioso poder ver, observar, analisar, anotar pessoas, coisas e atitudes, na minha habitual discrição e silêncio de eremita que tanto me ajudam.

Por outro lado, como que numa reverência antecipada, há qualquer coisa solene e profunda nesta gentinha que se acumula como formigas anestesiadas, falam baixo e olham repetidamente para as portas, alles in ordnung(todos/tudo em boa ordem), uma doce conluio de ponderato fare niente, em si mesmo, uma parte da cerimónia que nem começou ainda mas já o é.

Não vejo smokings, vestidos de luxo nem joias cintilantes, talvez reação de disciplina luterana a este programa de cristalina  Ars Gratia Artis(a Arte pela Arte), um mandamento que o Moisés se esqueceu de colocar nas tábuas do Sinai. 

Quando finalmente se abrem as portas, ninguém de roldão, tudo em procissão meio solene, passo grave e circunstancial, noblesse oblige, as  pessoas entram como se fossem para um misto de catedral ou confessionário coletivo – entre o ruído abafado de poltronas que se abrem e filas que se preenchem, o murmúrio recolhido de todos, faz sentir que ninguém deseja ser responsável por quebrar a intimidade do que se vai seguir. Do meu lado, alpino-me, é o termo. Escada a escada, lancil a lancil, são quase 4 andares e meio, dois deles em escada de caracol, os degraus finais rangem em protesto, apesar do tapete vermelho que lhes disfarça a barriga do meio, velhinhos que só Deus saberá.  Corrimão mais  corrimão,  haja bofes para o que me sobra de boca, o preço de gostar de música pode  fazer girar o mundo, mas a penas mais duras. Mas aqui estou, última fila cá de cima, ao meu lado uma opípara senhora de meia idade, toda tirolesa, de decote lunar (ou seja, quando se debruça, quarto crescente; quando se alteia, msmo assim, um interessante quarto minguante). O que realmente interessa é que do alto desta montanha, oitenta e tal carecas me contemplam lá em baixo, no mar da plateia, porque as túnicas e tules  brancos foram todos para o mais fino e aveludado dos camarotes, não sei se sabem que a sede da OPECO - Organização Mundial do Petróleo- fica aqui mesmo em Viena, vantagens de jogar em casa…

(continua)

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