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01 JUL 2018
BEETHOVEN - HORA DE CULTO - 2
Por Jornal Abarca

Bom, vamos a isto. Começam os aplausos de cortesia a dar as boas vindas ao maestro (Solti), músicos, soprano, baixo, tenor e contralto e coro. Uma multidão assim no palco, só a Sinfonia n.º 8 de Mahler ou a Sinfonia Marítima de Vaugham Williams se igualam

E minhas senhoras e senhores, psiu, começa, aqui vai a volúpia. Hmm, bolas, droga, o 1.º andamento saiu um pouco hesitante, Karajan teria feito bem melhor. Mas o 2.º Andamento recupera, a orquestra agora parece ter atestado o depósito, octanas mais límpidas, tema decisivo, batalhador, nervoso, como que a antecipadamente tirar o pó do pedestal à estátua da Amizade-Liberdade-Igualdade que se adivinha estar a ser preparada.

Ah, mas agora, por favor, silêncio, um momento dos meus momentos, uma das fontes do meu vício desde que me conheço – o 3.º Andamento, AdagioMolto i Cantabile,um dos três grandes momento da Música Clássica na minha modesta opinião, o pináculo Beethoveniano a que só a Grande Fuga op. 133se equipara.

O Andante Molto i Cantabileé um monumento! Doze a quinze minutos de uma serenidade tão envolvente e crescente como infindável. Emociona, envolve-nos no mais íntimo, faz vibrar, “quase que a batuta e os violinos tocam no céu”,como sintetizou Herzfeld (Nós e a Música, 1948). Agiganta os sentimentos, faz-nos crer que o homem-Prometeu de vez em quando detém a alquimia do brevíssimo mas existente dom celestial E não estou a exagerar – raramente escrevo sobre Música Clássica porque sem ouvi-la, não há diálogo que se entenda, fica monólogo em plateia vazia, caro leitor(a), se puder, interrompa a leitura, pegue num CD da Nona e vá direto ao 3.º Andamento da Nona. E mais não digo – os seus ouvidos farão o resto.

Últimos compassos e colcheias, coros e quatro solistas in maximum effortiori artis, Schiller bem se esforçou também, um gajo que sabia das coisas mas talvez idealista demais, To-dos, To-dos-os, Todos-os- Ho-mens, Ho-Mens são, são, Ir-Ir-mãos!, Ir-mãos, Ir-mãos, A-mi-zade, acelera, acelera, olha a pausa dos violoncelos a preparar a entrada das trompas assim que a soprano terminar, isso, vá, vá, trompas e clarinetes em stanzo duo, força,mais alto, violinos, violoncelos, contrabaixos, solistas, coros todos em força, in alto mas sem exagero, vibrato, vibrato, chegamos ao Himalaia, ré-ré-mi, ré-ré-mi, stacatto enérgico, pratos que celebram o auge, perfeita e santa orgia musical  Tã-Tã-Tã-Tã, Tã-,Tã-Tã-Tãtchããââchan,acabou !

Num fenómeno bem germânico, durante quatro ou cinco segundos, ninguém aplaude – é o conhecido “descer à terra”. Depois, sim, o vendaval organizado. Aplausos longos, compactos, cheios, demorados, mas ainda meio aturdidos, na humana debilidade de ter tocado em alguma coisa que nos escapa e vai continuar a escapar. Segue-se o protocolo habitual – aplausos para o maestro e músicos; breve saída do maestro para novas chamadas da plateia; aplausos para os cantores solistas; para o coro; para o painel de cordas e de metais; ramos de flores para a soprano e contralto, não sei como estão as rosas mas até que merecem.

Ouço à saída o comentário de um jovem magro, óculos pequenos e redondos, meu ex-vizinho do galinheiro. Vi-o levar muito a sério o culto beethoveniano, ao levar debaixo do braço um livro com excertos da partitura, que acompanhou com o dedo durante algum tempo e depois desistiu. Vira-se para mim e desabafa:

- Sabe, Schopenhauer tinha razão. Beethoven fez da música a forma mais nobre de uma linguagem que escapa ao nosso racionalismo de trazer por casa. Quem é que depois de um terramoto destes, ainda se pode dar ao luxo de acender velas a Kant e Voltaire? Que teriam feito eles se ouvissem o Andante Molto i Catabile?

E com ar resignado, enquanto enrola o cachecol ao pescoço e desce o resto das escadas em caracol:

- Só tenho uma hipótese. Não ouvir a Nona durante uns tempos. Se a ouço, lá vai tudo o que li por água abaixo...

Tem razão. Só que comigo é pior – há mais dois tsunamis do quase absoluto em música - o Requiem de Mozart e a “Despedida” da Canção da Terra de Mahler. Tanto gosto deles, que deles fujo.Porque sei como vou ficar, mais esticado do que paste de dentes. Talvez, talvez um café e um cigarro me sirvam de anestesia. Mas é uma droga molto lamentabile – em Viena não servem bicas.

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