Ah o medo vai ter tudo / tudo
(Penso no que o medo vai ter / e tenho medo /
que é justamente / o que o medo quer)
Alexandre O'Neill, in 'Abandono Viciado’
Se o medo é zelador da nossa sobrevivência, impedindo de nos atirarmos para qualquer iminente e conhecido abismo, possui a enorme e perversa capacidade castradora.
Pelo medo nos refugiamos em carapaças que julgamos impenetráveis, pelo medo escondemos o que de melhor temos, pelo medo calamos o que faz doer a alma, pelo medo recusamos dar o passo que nos conduzirá a um mundo melhor...
Medo do empregador e do empregado. Medo de Deus e do Diabo. Medo do governante e do governado. Medo.
Medo de ser e de gritar que o rei vai nu. Medo de dizer que o que depressa chega, depressa se esvai. Medo de assistir aos primeiros raios de sol, porque horas depois a estrela se esconderá no horizonte, mergulhando a Terra num escuro prateado. Essa luz branca propícia a ver por dentro. A ver o que o medo nos fez para temermos as centenas de minutos, as dezenas de milhar de segundos ensolarados que desperdiçamos.
Medo de sermos mais do que o corre-corre entre a hora de chegar e de partir... entre a imaginária viagem a ilhas paradisíacas e a bolsa que não chega para o telemóvel topo de gama com todos os sistemas e aplicações disponíveis no mercado... entre as mensagens que impedem a verbalização e o vizinho mesmo ao lado que também já perdeu a fala e em gestos mecânicos resume a vivência a uma das tais máquinas topo de gama...
E depois...
O medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos todos de chegar / quase todos / a ratos
Sim / a ratos