Home »
01 SET 2018
A ignorância e Os Maias
Por Jornal Abarca

De forma mais ou menos implícita, comigo própria, estabeleci numa espécie de acordo tácito não escrever aqui sobre polémicas sobretudo se se tratasse de questões políticas ou de controvérsias relativas à educação, pelo menos diretamente.

A rubrica Carpe Diemlibertar-me-ia, a priori, desses espinhos. Ficariam as rosas.

Por estes tempos, tenho acompanhado, como o comum dos mortais, o que nos media se diz acerca da alteração do programa de Português de 11º ano e consequente colocação de Os Maiasde Eça de Queirós como romance a ser lido e estudado só se o aluno optasse por ele de entre as obras do autor.

Há muito tempo que me habituei a que a generalidade das pessoas confunde liberdade de expressão com obrigatoriedade de se pronunciar sobre todo e qualquer assunto ainda que dele não tenha nem uma ínfima e ténue luz do que possa ser o dito. Ora, a educação é o tema por excelência para opinar. É como se eu começasse a discursar acerca da qualidade e da espessura de um bisturi, do sentido, da força e da profundidade a utilizar aquando do corte numa intervenção. Surreal!

Manuel Alegre, utilizando uma linguagem que parece saída da época do 25 de Abril de 74, “saneamento”, “clandestinidade”, in Público,fala da distinção que se pretende realizar entre a escola pública e os colégios privados que prepararão as elites do futuro deixando os textos mais curtos e mais fáceis, de menor exigência, para a escola pública. Recorda que no “Verão Quente de 75, queriam substituir Camões pelos textos de dirigentes dos movimentos de libertação africanos” ao que se opôs. Termina deixando um apelo e pedido de opinião ao primeiro-ministro e ao Presidente da República. Defende fundamentadamente a referida obra integrada no programa. Trata-se do direito de ter uma escola pública democrática, exigente e que prepare devidamente os jovens, não os colocando como cidadãos de segunda, pois o que muitos esquecem é que com o facilitismo vem a impreparação e o fosso entre os que podem financeiramente e os que não podem. Ganhou pontos.

Isabel Pires de Lima, no artigo “Nunca leu Os Maias? Não sabe o que perde!”, no mesmo jornal, refere esta obra como “peça angular do património cultural português” comparando-a a monumentos nacionais de vulto e a obras de artistas importantes de outras áreas do século XIX. Fala de identidade nacional e coloca-a em paralelo com obras de Flaubert, Balzac e Dickens. Refere-se à beleza do romance e ao facto de ser o cânone por excelência do romance do século XIX português que o próprio Eça mencionara como tendo todo o conteúdo do saco – “obra magna do autor”. Segundo a autora, seria uma obra mais trabalhosa, mas igualmente mais qualificante. Sem dúvida. Até aqui, esteve muito bem. Como “não há bela sem senão”, termina o artigo defendendo a substituição do estudo do romance do único Nobel da Literatura Portuguesa (quer queiram ou não) por um outro romance sugerindo nomes, nomeadamente Vergílio Ferreira, que adoro e considero excelente, mas que não pode substituir, nem no estilo, nem na escola, ou ausência dela, nem na doutrina, nem na conceção do ser humano, nem na visão crítica, em nada, o primeiro. Não por ser melhor ou pior, mas incomparável. Introduzam-no, mas não à custa de Saramago. Aliás, Memorial do Convento, a obra-prima deste autor, foi preterido por O Ano da Morte de Ricardo Reis e, neste caso, não foi o critério do facilitismo para o aluno, nem do tratar de assuntos mais interessantes para o aluno, pelo contrário. Trata-se apenas de um romance muito menos crítico, se calhar foi essa a ideia. Lástima!

Contudo, foi o artigo “Polémica tola: “Os Maias” no secundário”(aspas colocadas pela autora), de Maria Filomena Mónica, in Expresso, que me tirou do sério, sobretudo com o suposto argumento destacado como se de uma revelação se tratasse – “Mesmo quando a obra era de leitura obrigatória, a esmagadora maioria dos alunos nunca se deu ao trabalho de a ler de ponta a ponta”. Ora, então, se não leem, tira-se do programa? Refere também “Os professores até podiam – conheço alguns – admirar Eça de Queiroz. Muitos desejariam transmitir aos alunos a vontade de ler “Os Maias”, mas estavam conscientes de que, caso o fizessem, os prejudicariam.”Como? Não sei com que professores falou, mas garanto que, apesar de não ser fácil fazer nascer a vontade de ler esta ou outra obra a muitos dos nossos jovens, quando se consegue, não os estamos a prejudicar. Esta é que é realmente uma ideia “tola”. Pergunto-me se a autora terá lido a obra. Pergunto-me também porque não seguiu o conselho dos seus amigos de não se pronunciar sobre este assunto. São bons amigos. Pelo tom acre e pela fuga ao assunto que tal artigo manifesta, parece-me que se tratou de aproveitar a polémica para ajustar contas numa crítica acérrima a Carlos Reis. O senhor professor dar-lhe-á a devida resposta, que para isso tem competência e muito mais, se a tal se dignar.

Esta operação cirúrgica nefasta que não mata o paciente, mas lhe diminui as possibilidades de viver, entenda-se por vida ser agente preparado, pensante autonomamente, é mais uma, de muitas, à escola pública.

Assim, há alguns políticos medíocres que têm destas ideias, e arranjam logo coro, mas, tal como chegam, também hão de partir. Apesar de, no passado, no presente e provavelmente no futuro alguns génios, donos de toda a sapiência, tentarem esquecer, denegrir e cortar essa riqueza, há que esclarecer que felizmente temos um património de uma magnificência pouco valorizada, mas incalculável, na nossa literatura e, seguramente, o bom senso regressará.

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
Sim
Não
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design