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17 ABR 2023
OPINIÃO | "Dias de triste covardia", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

Pode parecer ultraje. Que estou a desrespeitar as trincheiras dos que se enfileiram por valetas, praças e portões, cartazes alçados e palavras de ordem um pouco automatizadas. Que estendo uma mísera aspirina a quem precisa de transplante de rumo da vida. “Parece” mas não é. Ultrapassa-me, sou barata, mal me reconheço. Só participei numa greve (Greve Académica)mas já assisti e atrasou-se-me o tempo em muitas, sempre por motivos que pareciam nobres mas nem sempre lúcidos, so is life. A Polónia (Solidarność,1980); a França (Gillets Jaunes,2018); o UK (Greve dos Mineiros, 1984-1985) e os EUA dão cartas - com a agravante de, nos dois últimos casos, as greves serem papel de embrulho de racismo ou de forte discriminação social e de género. Para quem investigue o tema, não é novidade saber que os elogios, piadas e críticas vêm de longa data:

  • Fico bem contente em ver o sistema de trabalho que prevalece na Nova Inglaterra onde os trabalhadores podem fazer greve quando quiserem; não são obrigados a trabalhar sujeitos a quaisquer circunstâncias que lhes sejam impostas, nem amarrados a trabalhar seja para quem for, bem ou mal pagos”Abraham Lincoln,1860;
  •  As greves podem ser prejudiciais para os trabalhadores, mas também o são as bebedeiras nos piqueniques do Dia do Trabalho (Labour Day,Setembro)e eles participam alegre e efusivamente de ambos” Finley Dunne, 1910;
  • O sindicalismo raramente usa o seu poder para assegurar melhor trabalho; quase sempre dedica boa parte desse poder, para servir de braço de intervenção política, mais ou menos radical” – Henry Louis Mencken,1922.Adiante.

O que me atinge é ver como numa caixa de sapatos tão pequena como Portugal, podem contar-se pelos dedos, os setores que não estão em greve ou em crise, permanente ou intermitente. Descontando as de estimação e já atração turística (CP, Metropolitano, Carris, Transtejo), desta vez são muitas, muitas mesmo, as vítimas das trincheiras - professoras (professorassim senhora, e não “professores” - há mais Elasdo que eles, até que enfim); oficiais de justiça e escrivães; médicos e cirurgiões; paramédicos e enfermeiros; assistentes sociais; doentes à espera de tratamento ou de morrer; quem não tem casa; quem a tem, mas sem dinheiro para por sopa na mesa; e tantos, tantos mais que sofrem pela calada. São dias tristes, cravam-se espinhos, a que ponto chegámos…

Como foi possível ficarmos cai-não-cai, à beira de outro vulcão dos Capelinhos? Para que serve votar ultra democraticamente na tranquila estabilidade de uma maioria, se depois acaba tudo numa piada pornográfica em velório de enterro de servidoras sociais de sexo sem IVA, vulgo putas? O que vale Portugal hoje em dia se admitirmos que nos asfixiaram com outro Ultimato, só que decretado por nós próprios? Lembra-me o tal beco, citado por Pombal: “Em Portugal, há momentos em que a única certeza é avó, mãe e madrasta de dúvidas”. Enfim, digo de passagem que estes dias tristes, nada têm que ver com as reticências do dia-a-dia que respondem por quem sou. Deslizo com as ovelhas do rebanho dos conformados, a querer iludir-me que faço a minha parte, dou o meu contributo quando deixo uma palavra de conforto aos injustiçados e esquecidos. Mas que não convence. Porque se as queixas nada me pedem, no fundo exigem e cobram, com toda a razão. E se não me insultam por ser covarde, é por ser denominador comum. Mas sou. Porque simpatizo e apoio tudo e todos, mas daqui, da minha área de conforto; desde que o meu café não fique frio, o Sporting ganhe no domingo e não me esqueça de responder já ao e-mail de uma aluna, preocupada em apurar se a crise do Credit Suisse vai ou não deitar por terra, a tese de mestrado (nota: eu tinha-a avisado - vai, sim). Como de costume, lavo a roupa do dia, ponha-a no estendal e finjo que não faço parte destes dias aparentemente iguais e espessamente cinzentos. Afinal há sempre a saída caridosa do “eu sou eu e a minha circunstância”(Ortega y Gasset). Proverbial mas de pouco adianta - há dias em que o amargo do quase vazio arma-se em meu senhorio, a inventar motivos para me despejar, ainda que tenha as rendas em dia. E se não me dou ao luxo de angústias existenciais, são dias de tragédia domesticada, mansa, aquela página de diário sempre por acabar mas que nunca faz esquecer a razão de vida, de vocação, do escalar diário dos Himalaias. Talvez seja traição de alfarrábio entrar nesta simpatia fácil mas não deixa de me atrair a solidariedade inata por quantos o Estado arquiva em vida. Se não estou à procura de pretexto para justificar a tristeza dos dias sem razão de ser, aí sim, estendo a mão inteira aos que aguentam o arame farpado, compartilho os dias do nada em especial, os que se repetem; os que seriam rotina, se cada um não fosse de sobrevivência E ser digno disso.

Vejo na TV as manifestações, piquetes, alguns sorrisos e determinação, natural cansaço. Mas nenhuma desistência. Por agora, esse é o ponto. Penso comigo próprio, quantas destas caras não aguentam um tsunami cada dia que mastigam. [Levantar às 7, sair às 8, transporte em pé, emprego às 9. Meio-dia, sandes embrulhada ontem à noite; galão na pastelaria em frente. Telemóvel, já ouviste que se demitiu outro tipo do Governo? Voltar, aturar um(a) colega com manias de chefe. Pegar nos tarecos, sair às 6, regresso a casa, transporte cheio, chegar às 8. Aquecer uma sopa e restos para o jantar. Ver novela?, náá, uma porcaria, cheio de anúncios. Comentadores políticos? Falam demais, dizem de menos, pobres ucranianos, pobre turcos, que desastre! Faço o quê amanhã para o jantar? Talvez arroz com conserva de atum? Assim é difícil, tudo pelas horas da morte, vou é dormir].E o dia, os dias, as semanas, os meses mudam. Corta o acessório; do importante, agora só o vital. E no topo da montanha, boias de salva-vidas. Cabeça fora de água, se há braço de ferro, tem que enferrujar 1.º o do Governo, aguentar, aguentar. Sim, é triste. Mas não é fado, Pode ter a azia do sórdido mas temos que dar a volta. Não podemos ficar na inércia do movimento de só sentir que Portugal vale a pena num golo de Éderem 90 minutos + descontos e nas maratonas de Carlos Lopese Rosa Mota. Há bastante mais - quem tem a abissal pequenez de ser só mais um, de arraia-miúda. Mas com fibra de não desistir, de continuar a segurar as 8 horas de trabalho e ver com prazer o que lhe sai das mãos; quem mostra que é capaz de ser capaz. O mesmo homem que tem que abrir os sentidos e aprender a votar. O sistema está errado, jogo de cartas marcadas, primos de primos meus primos são. Haja coragem de o fazer. Até lá, rodamos no vazio. Como diz Alçada Batista, “Rodar no vazio é o diagnóstico do nosso mal-estar. Mesmo quando os dias se enchem dos milhões de detalhes inevitáveis de que um dia se compõe. (…). Dias em que sinto a nostalgia de ver um rosto realmente humano, do outro lado das costas de quem está na minha fila. ”. – O Tempo e as Palavras, 1972.    

Mas esse é o milagre de uma greve. Por maior paradoxo que pareça, como que o vazio se abre, irrompe uma força comum, inesperada, autêntica, sem oratórias, nem demagogias. É difícil, mas possível.

E talvez, talvez eu deixe de ser covarde.

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