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01 AGO 2009
MIA COUTO: "EU NÃO TROCAVA ESTE MUNDO"
Por FERNANDA MENDES


“Se me entregassem um mundo perfeito, eu não o trocava por este…”, afirmou Mia Couto, escritor moçambicano, durante a apresentação, em Abrantes, do seu mais recente livro “Jesusalém”. 

 

Foi a segunda vez que Mia Couto, escritor moçambicano, esteve em Abrantes. A primeira foi no final do século XX, em 1999, convidado pela Associação Cultural “Palha de Abrantes”, para o 2º Festival do Imaginário. Dez anos depois, regressou - desta vez veio à Biblioteca António Botto -, para falar sobre o seu último livro, “Jesusalém”, numa sessão realizada na noite de 21 de Julho. 

Para o ouvir estavam à volta de cem pessoas, a maioria sedenta de trocar impressões com quem os habituou a cruzar a vida com a imaginação. Dez anos passados, o autor de “Raiz de Orvalho”continua a ficcionar factos e a reinventá-los. Em “Jesusalém” prossegue um caminho de ruptura iniciado nas últimas duas obras, “para não ficar prisioneiro de um estilo”, justifica. 

“Uma história povoada de gente sem esperança…”, referiu Francisco Lopes, director da Biblioteca António Botto, de imediato corroborado pelo autor: “ …eu tenho uma relação com este mundo como quem não consegue viver com ele, porque é um mundo que está desencantado e dessacralizado…” disse, inconformado, como se a escrita fosse uma arma. A prosa mágica do escritor moçambicano ajuda, certamente, a reencantar este nosso mundo, afirmando ele próprio que: “Se me entregassem um mundo perfeito, eu não o trocava por este…”. 

O livro parte também da história de Moçambique, da sua capacidade de lidar com o passado para abordar “a tentação e a impossibilidade de recomeçar do zero”. De resto, a “terra” como Mia lhe chama, está sempre presente. E, os olhos do autor brilharam, quase que a esconder o cansaço – Mia Couto andou pelo país numa digressão exaustiva a apresentar o livro, a convite da editora “Caminho” -, quando da plateia a Notária Sónia Onofre, disse: “eu sou moçambicana e, por isso, os seus livros e as histórias que conta tocam-me de uma maneira especial”, ou já quase no final, quando Fernando Morais, vereador da Câmara do Sardoal resgatou da memória a imagem de um espaço físico que ambos partilharam em Moçambique: uma escola.

Desta vez, Mia Couto esteve menos tempo em Abrantes. Ainda assim nenhuma das perguntas ficou sem resposta. Quando Francisco Lopes anunciou ser a última pergunta, na plateia fez-se silêncio, como que a querer dizer do prazer que é estar frente a um autor com lugar cimeiro na literatura de língua portuguesa. Ainda assim, houve tempo para inconfidências. Mia Couto confessou gostar de aeroportos, porque: “são locais que traduzem o mundo. Todos nos cruzamos e não nos conhecemos.”

Misticismo africano

A propósito de “Jesusalém”, Pires Larangeira, professor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, escreve no “Jornal de Letras”, de 29 de Julho: “(…) é um belíssimo e instigante romance propício a ser adoptado pelas escolas de ensino secundário, integrado no cânone universitário das literaturas africanas ou das lusófonas(…)”. 

Na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes (ESTA), Mia Couto já foi uma referência de estudo. Maria Romana, directora do Curso de Comunicação Social, escolhia com frequência textos do autor para analisar com os alunos da cadeira de Literatura Portuguesa. Embora não fizesse parte do programa, a docente incluía textos de Mia Couto sempre que realizava aulas práticas de autores portugueses hodiernos, ou seja, contemporâneos de expressão portuguesa. Uma preocupação da docente que se justificava pela presença numerosa de alunos oriundos do arquipélago de Cabo Verde, nesta escola. Mas não só! O misticismo africano merecia o interesse de alunos que, sendo de nacionalidade portuguesa, transportavam consigo memórias de família relacionadas com ligações às antigas colónias, provando que o autor escreve pela boca do povo e sente a terra que é sua por nascimento e por direito. Para além das escrituralidades do autor, há outras formas de escrita que passam pela criação lexical.

Maria Romana explica que a escrita do autor espelha um certo universo ficcional, intensamente ligado à cultura e imaginário moçambicanos e aos mitos rurais e urbanos, sustentados em formas de arte verbal da oralidade popular. Por isso, não se estranha que a recepção dos alunos sempre tenha sido positiva. Com a transição do curso de Comunicação Social da ESTA para Bolonha, a cadeira de Literatura Portuguesa foi extinta, sendo substituída pela Unidade Curricular de Cultura Portuguesa Contemporânea.

E se Mia Couto lhe matasse a curiosidade?

No livro, tudo e todos são rebatizados: “Silvestre Vitalício”; “Dordalma”; “Mawanito”, “Ntunzi” e a burra “Jesibela”. Amélia Bento, documentalista, leitora assídua das obras de Mia Couto tinha curiosidade em saber como é que o autor escolhe o nome dos personagens e do simbolismo que os mesmos carregam. A pergunta foi por mensageiro, Mia sorriu e respondeu: “estes personagens são fruto de invenção e um pouco também da nossa própria experiência. Eles são um pouco de nós próprios. Todos partilhamos desse sentimento de frustração perante um mundo que é difícil de mudar. São personagens que fogem do seu passado para acabar perseguidas por ele, o que as impede de recomeçar ”. E, a seguir, resume a trama do romance: “ Conta a história de Silvestre Vitalício, que se afasta do mundo abalado pela morte da mulher e se refugia num lugar longínquo onde aguarda a chegada de Deus, para pedir desculpa aos homens”. Esse lugar chama-se “Jesusalém” (não confundir com Jerusalém porque, neste caso, não é um jogo de palavras) e é um lugar de memórias. E, é também no título do livro que o autor repete a marca da sua criatividade.

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