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01 JUN 2008
JOAQUIM VIEIRA: ENTRE O SAGRADO E O PROFANO
Por RICARDO ALVES

 

A arte não se rege pelas regras do mundo “normal”, bebe dele mas maquilha-se e transforma-se.

 

Joaquim Vieira, 50 anos, é o residente do n.º 21 de Vila Nova da Barquinha, terra onde nasceu. Na cave da sua casa o ar é arejado, diferente. Ali se encontra a história da vila, num espaço de conversa, música dos anos 80 em tom ameno e peças de barro, instalações com objectos antigos. Criações artísticas de Joaquim Vieira: “Um espaço querido e Kitsch”. 

Mas a arte maior é o conjunto de tudo, uma galeria subterrânea de segredos para “os amigos desfrutarem”. 

E quem é Joaquim Vieira? “Sou filho de José Francisco de Matos Vieira e de Maria dos Santos Joaquim e carrego dentro de mim essa herança. Fui operário de cerâmica durante 19 anos e hoje ainda me considero operário”. As pessoas nunca são uma única coisa. São outras, tantas outras. 

Viveu a vida a percorrer o país procurando o seu lugar, mas a Barquinha sempre fez parte de si e ali se instalou e vive. Tem três filhos e as suas outras paixões. “Não gostava que tudo o que reuni durante a minha vida se perdesse… São os meus filhos que se devem encarregar de assegurar que nada disto se perde”.

 

BAR

 

“Adquiri a casa em 1993 e em 1994 nasceu o bar. Não tenho clientes mas sim amigos, meto-me com as pessoas e o ambiente é familiar. É a família do 21”. Os “amigos” vêm de todo o país, visitam, tiram fotos, bebem abafado, conversam sobre o que observam e interessam-se pelo espaço e pela pessoa que o criou. A alma do bar. “São pessoas que gostam do barroco, e se gostam do bar é porque gostam de mim”. 

Tudo o que se pode ver no bar foi criação de Joaquim Vieira, mesmo os objectos expostos, que foram oferecidos por pessoas mais velhas a quem apenas pediu “papéis antigos” - a sua grande paixão - são dispostos de forma diferente. “O que gosto mesmo é de papel velho, o cheiro”. 

Os objectos fazem parte do todo, que é o bar etnológico, em si uma criação artística. “O bar é sem dúvida a minha obra maior, é a minha vida”. E isso diz muito, Joaquim está de interior exposto nas paredes. No entanto, o projecto não acabou: “Enquanto espaço social o trabalho está feito, falta fazer dele um verdadeiro museu. A Câmara Municipal da Barquinha dá o seu contributo, o chão original de barro foi recuperado e tenho os meios para informatizar os papéis e fotografias para os poder mostrar a quem estiver interessado”. As suas peças de barro, os Castelos de Almourol, são requisitadas pela autarquia com alguma regularidade. “Por vezes as minhas peças servem de presente, lembranças para notáveis e outras personalidades que passam pelo concelho”.

 

COLECCIONISMO

 

O bar museu etnológico faz parte de um circuito cultural que engloba outros municípios da região, um protocolo com o Parque Arqueológico e Ambiental do Médio Tejo. “É uma rede de interacções, por exemplo, se chegar aqui ao bar uma pessoa interessada em cavalos eu oriento-as para a Golegã. O mesmo se aplica inversamente se as pessoas chegarem lá e perguntarem por etnologia”. 

A colecção de Joaquim Vieira engloba fotografias, cartazes de festas, de touradas, de festas dos bombeiros e jornais, entre muitos outros documentos e papéis que são parte integrante da História da vila e cujo valor é essencial. “Tento adquirir e achar tudo o que fale da Barquinha, tenho coisas antiquíssimas e muito interessantes”. 
A população também ajuda - “há pessoas que vêm entregar-me fotos e documentos” – e, faz questão de realçar o propósito da sua colecção: “Nada disto é um negócio!”

Joaquim Vieira tem uma colecção infindável de documentos, livros e fotografias. “É impossível expor tudo, mas digitalizando o que for possível será mais fácil para as pessoas acederem, seja na internet ou no próprio bar onde gostava de ter um ecrã a passar as imagens”. 

Vive rodeado de livros e papéis “velhos”. É alguém que sabe o valor da História, do passado. “O que nos distingue dos animais é a capacidade de registar memória. É com o passado que preparamos o futuro. Sem memória que futuro teremos?”. Será que não nos preocupamos com o passado, a História? “Há a máxima que diz quanto mais ignorantes mais felizes”. É uma noção algo redutora da vida mas então qual a razão de tantos livros, tanta informação? “Tivemos cortes na memória colectiva, o incêndio da biblioteca de Roma, de Alexandria e também os 500 anos de Inquisição, sem estes acontecimentos teríamos uma memória mais completa.” 

Junta-se a isso a paixão pelo papel velho e Joaquim torna-se um guarda de segredos. Segredos que gosta de partilhar.

 

O MUNDO

 

Quando se fala no mundo as fronteiras ridicularizam-se e o todo transforma-se numa noção simples. Como é o mundo de Joaquim? “O meu mundo é o que conheço e agora pouco saio daqui. Dizem que é grande. O mundo. Mas eu nunca saio daqui. Resumo-me à Barquinha e a 50 quilómetros em redor. Sou um sedentário”, diz em gargalhadas. 

Ouve-se as palavras de Joaquim e olha-se em seu redor… Paredes forradas de livros, de história e antiguidades e sorri-se por dentro. 

“Não acredito nesta democracia enfeitada. Já não somos Portugal, somos Europa, e não temos as mesmas condições. Se a vida dos portugueses já depende mais do que se passa na Bélgica do que o que se passa aqui… Já não somos país!”. O que acontece no dia-a-dia não lhe afecta a convicção. “Espanha é outra coisa. Os Estados Unidos da América até já enviam cartas para Lisboa que vão ter a Madrid…”. 

Para Joaquim é o poder que corrompe tudo. “O mundo mudou, é o poder económico que é a nova arma. Os políticos são um fiasco, querem poder. Eu só queria poder para… levantar uma botija de gás e fazer outros esforços físicos mais exigentes” [risos]. 

Porque a condição humana poucas surpresas lhe traz, prefere ver o país de forma poética. Afinal Portugal é um “lugar de poetas”. E é na leitura que encontra uma das suas paixões. “Gosto mais dos poetas portugueses, Alves Redol, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga e dos clássicos como Eça de Queiroz. Gosto de poetas que escrevem o que sentem e não o que as pessoas querem sentir”. 

No que toca a romancistas as suas preferências vão para autores estrangeiros. “Albert Camus, John Steinbeck e o grande Kafka têm outras vivências”. Não podia deixar de se falar de Saramago, o Nobel da literatura. “Saramago é um idoso cheio de cabeça. Não gostava muito de ler Saramago. Li o ‘Memorial do Convento’ um pouco mas deixei a meio, apesar de me recordar de uma frase, ‘A Rainha tinha a Madre seca’, genial”. A reaproximação ao escritor veio depois. “Um dia fui até à Azinhaga, para o lançamento do livro ‘As Pequenas Memórias’ e emocionou-me ver a festa popular de raiz a um homem da terra que até vive em Espanha. Fiquei à espera de ver o ‘bicho humano’ a respirar o mesmo ar que eu e lá apareceu, sisudo. É ribatejano, duro, teima na existência e ao ouvi-lo falar transmitiu-me um grande gosto”. 

O livro “Ensaio sobre a cegueira” foi depois lido de uma assentada. “O meu filho indicou-me o livro e fiquei apaixonado. É uma ficção real constrangedora, parece que Saramago viveu no mundo dos cegos e, por isso, é um visionário”.

 

ARTE

 

Para além do barro, do bar, do livro de poesia erótica que editou, das instalações de objectos antigos que vai criando com naturalidade, Joaquim passa algum tempo a criar outras formas de arte. “As colagens são uma coisa que gosto há muito tempo, desde a primária. Depois aos 17, 18 anos voltei a fazer recortes e colagens com fotos a cores e fotos a preto e branco. Infelizmente desapareceram”. 

No bar tem exposto algumas dessas obras, desde quadros a instalações. O tema religioso está muitas vezes presente. “Tenho a minha fé, sou de família católica, só não fiz o crisma. Os rituais agoniam-me um pouco, mas gosto muito de arte sacra. Sou um gajo cheio de fezada…” A sua obra artística reside no limbo entre o sagrado e o profano, tema de uma das suas exposições recentes. “Uma das coisas que as pessoas deviam fazer era curtirem-se, sem hipocrisias, sem falsidade, mesquinhez, serem mais livres, mais humanas. As colagens surgem por aí, percebo pouco de cérebros…”. 

Na arte o gosto pelo que se observa pode suscitar sentimentos exaltados e Joaquim junta ingredientes improváveis que no fim criam imagens que seduzem à questão, ao pensamento. “Já expus na Barquinha, em Tancos, Tomar, Abrantes e Torres Novas, e as pessoas elogiam-me o arrojo e a coragem”. 

Os recortes fá-los utilizando revistas e jornais do quotidiano e, como a nudez é parte integrante das suas colagens e ainda não é um assunto normalizado, recorre a outras fontes. “Gosto de pornografia e recorro às revistas da especialidade. No fundo o que faço é cortar o que as pessoas mais gostam. Corto os membros e depois monto as peças, processo que é moroso e nada aleatório”. O que o leva a criar, a produzir? “O facto de não sair daqui não me inibe de fazer coisas que me passam pela cabeça. Recortar revistas é um pouco esquizofrénico. O ser humano tem muitas fomes, fraquezas, e tem a capacidade de criar. Diz-se que a fome e o frio põem a lebre ao caminho. E tenho muitas fomes, porque gostava de conhecer mais gente, logo mais coisas, as pessoas têm sempre gostos, carregam algo em si”. 

Na cave, que é bar, há peças de barro que são expressões humanas, desfiguradas. “Gosto de fazer máscaras, rostos, expressões. Aqui há muita angústia, as pessoa dizem bom dia e riem-se mas têm a pele baça, não se arranjam, andam robóticas. Casa Igreja, Igreja casa, casa loja, loja casa… Os pais já nem tempo têm para educar os filhos. Isso reflecte-se no que construo”. 

A inspiração surge na normalidade dos dias, tudo é alvo de observação. “Quase não vejo televisão. Por vezes ligo-a e só vejo pessoas histéricas a entreter pessoas com insónias. A televisão é o espelho do nosso país. Ainda querem mais um canal? Não sei bem para quê!”. 

É tudo isto que o leva a reservar-se no seu mundo. “Vêm aqui, ouvem música, conversam, olham a decoração e passam uma boa noite. Fico satisfeito por ter o meu mundo, os meus filhos, os meus amigos e nem quero pensar para onde vão os meus impostos”. 

Quando chega a hora de encerrar o espaço a noite já gatinha e agitando o badalo por cima do balcão Joaquim anuncia com um sorriso: “Meus amigos, está na hora que amanhã é dia de missa!”.

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