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01 AGO 2009
IRENE CARDINALI: TRAPEZISTA SEM REDE
Por RICARDO ALVES


Irene Cardinali Elisabeth Carvalho Cardigos completa 83 anos de (muita) vida a 7 de Agosto. Vida que a levou ao circo onde deliciava a plateia com a sua dança e as suas acrobacias no trapézio sem rede. 

 

Vive em Vila Nova da Barquinha desde que, um dia, por lá passou e ficou. Rodeada de bonecas de todos os tipos e idades, objectos que não o são, vive na companhia dos seus animais, dois cães e um gato. “Foram todos retirados da rua, eram vadios. Aqui cuido deles e eles fazem-me companhia”. Mas não se pense que Irene tem tristeza ou solidão no olhar. A “Madame Elisabeth”, seu nome artístico, é de uma alegria contagiante e uma energia que a faz recuar no tempo em sorrisos prolongados.

Origens

Foi a vida que a levou ao circo e que a afastou dele. O avô de Irene Cardinali veio da Grécia com o circo. “Era Hércules, trabalhava com alteres”. A avó de Itália, também com o circo, com os pais. “Para cá vieram, cá se conheceram e cá se casaram”. Uma família de artistas. “O meu primo, Vítor Hugo Cardinali ainda está ligado ao circo e a Eunice Muñoz também é minha prima”. 

Não são, no entanto, os únicos Cardinalis. O número doze a carregar a fundo na árvore genealógica. “Somos muitos… A minha avó quando veio tinha doze irmãos e depois teve… doze filhos!”. 

Mas foi a mãe que serviu como imagem de artista para a pequena menina de três anos e meio, quando começou. “A minha mãe era trapezista no circo e conheceu o meu pai em Chaves”. Rodeada de bonecas conta o que fazia nas artes circenses. “Aos três anos e meio comecei a minha carreira no circo. Era bailarina do mundo, dançava em cima de uma mesa de ping-pong e vim fazer esse número à Barquinha. Mal sabia eu que ao fim de dezassete anos voltava à Barquinha e aos dezanove cá casava”. 

Aqui entra o circo que a levou à terra que é a sua desde 1944. “Quando cheguei aqui foi com o meu circo e foi aqui que ganhei um irmão, filho do meu padrasto, com quem actuei muitas vezes. Fomos criados juntos e temos vinte e três meses de idade de diferença. Ele trabalhava comigo no trapézio e éramos bailarinos” - e mostra a fotografia da dupla com o irmão franzino e o sorriso jovem que ainda conserva. Recorda também uma vez em que estava doente, mas foi para o trapézio com o irmão, por pouco não houve um acidente grave: “Um dia, em Torres Novas, estava muito doente, com muita febre. Como o meu irmão era mais franzino, era eu a base, ou seja, era eu que o segurava nas mãos com as minhas pernas presas ao trapézio. Deu-me uma fraqueza súbita e desmaiei. O meu irmão caiu de uma altura de cerca de oito metros, mas felizmente não caiu de cabeça, mas sim de pé. Foi um susto muito grande e no fim quem foi para o hospital fui eu!”. 

O trapézio não foi algo que se atravessou na sua vida de forma pensada. “A minha mãe é que era trapezista, mas era cardíaca. Morreu na Barquinha com 38 anos. Eu para a tirar do trabalho no trapézio pedi a um empregado meu que me ensinasse, às escondidas, sem que ela o soubesse. Na estreia foi uma grande surpresa para a minha mãe e eu só queria mesmo é que ela deixasse de o fazer, para seu bem”. 

A vida no circo, ou o circo da vida

O circo não era a única actividade que tinha, porque só funcionava durante o Verão. No Inverno, a música preenchia a sua ocupação. “Fui nomeada Rainha da Rumba no Coliseu do Porto e fazíamos espectáculos de revista, criações nossas. Fazíamos espectáculos por todo o país”. E era disso que mais gostava, apesar de o circo estar presente ao longo de várias gerações na família, era o teatro que lhe abria mais o peito. “Eu gosto das maluqueiras da revista, das músicas e letras malucas e realmente era diferente. Gosto muito de circo, mas do que realmente gosto mais é de teatro”. Também fazia um número de boneca articulada com movimentos mecânicos em cima de uma pequena mesa. 

Houve uma altura em que foi convidada a fazer um espectáculo na Base Aérea de Tancos. “Fui uma vez cantar para o meio dos soldados… aquilo foi a maior barraca de todos os tempos…” (risos). Foi no tempo em que os soldados usavam as gredas nas pernas. Vesti-me de soldado, mas um soldado muito relaxado, com um bigode às três pancadas a cantar os versos de Tancos…”. E é então que “Madame Elisabeth”, levada pelo doce vento do tempo e da memória faltando apenas a farda, o bigode e as gredas nas meias, canta os versos que naquela noite fizeram as delicias dos presentes. 

O circo hoje é diferente e, sendo Irene uma especialista na matéria, será melhor ou pior? “É melhor, sem dúvida. Há menos, mas melhores. As poucas vezes que o circo passa pelo Entroncamento eu vou ver”. É aí que mata saudades e relembra sons e cheiros, cores e luzes, do tempo em que a sua vida era vivida a baloiçar sobre as faces incrédulas dos espectadores. Do tempo em que de pequena se fazia grande no circo que era vida e na vida que era circo. “Vou ver, sempre que posso, o circo do Vítor Hugo Cardinali, que é uma categoria, e o que mais gosto de ver são os números de trapézio, continua a ser o momento predilecto das minhas visitas”. 

Os tempos são outros, não se cansa de repetir, e muito mudou, desde os hábitos que se desabitaram das companhias de circo actuais e que eram muito diferentes no passado. “Hoje as pessoas do circo andam com roulottes. No meu tempo não era assim. Levávamos sempre um camião com mobília e tudo o que fosse preciso e alugávamos casa onde fossemos actuar. Se não houvesse casa para alugar ficávamos numa pensão”. 

Após o falecimento de sua mãe, Irene ficou com a casa da Barquinha. É lá que mora ainda e é lá que gostaria de continuar a morar, mas a casa também tem uma história para contar. Em 1979, o ano em que o Rio Tejo, impaciente, galgou terra e inundou a vila como nunca antes tinha sido visto, metade da casa de Irene ruiu. “A parte da casa que era acolá foi-se com a água. A água esteve aqui (apontado para o chão). Tive de sair pela janela”. Nestas ocasiões chama-se os bombeiros e aqui entra mais uma curiosidade. 

Casou em 1946 e teve duas filhas que a prendaram com três netos, um rapaz e duas raparigas. Talvez o destino que lhe levou uma parte da casa lhe tenha retribuído a perda com duas netas gémeas que mostra orgulhosa na máquina do tempo que é o álbum de fotografias. A curiosidade reside no facto de uma das suas filhas ter sido uma das três Anabelas, as primeiras Bombeiras do país. “As primeiras eram daqui da Barquinha e a minha filha era uma delas”.

Em movimento

Irene sempre esteve ligada ao mundo do espectáculo, apesar de o desaparecimento da sua mãe lhe ter trazido algum desencanto. Ainda assim nunca parou. “Formei o grupo Barquinha Saudosa do qual faziam parte viúvas da vila. Cantei durante algum tempo no Grupo Coral de Tancos, mas ao fim de algum tempo desisti porque as músicas eram muito diferentes das de que eu gosto. É como lhe digo, gosto de maluqueiras, músicas divertidas”. Ademais participa sempre que pode nas festas da vila, canta para os alunos das escolas, diverte e diverte-se. “Gosto de fazer coisas, de ajudar com o que posso. Nas feiras de época participo também. Convidam-me e lá vou eu vestir-me ao baú com roupas antigas para ajudar. Até já vendi castanhas! Enfim, tanta coisa que já fui… Até já vendi castanhas, mas só para ajudar à feira porque, felizmente, não preciso”. 

No final da conversa, mais algum tempo para passar os olhos pelas fotos antigas. Dezenas de fotos de uma vida ligada ao circo, ao teatro, à dança. A “Madame Elisabeth” em todas elas vestida com a pele de artista. Ficou uma pergunta por fazer, se a Madame ainda dança. Ficou sem resposta, mas pelo sorriso contagiante que transporta consigo atrevemo-nos a pensar que sim, pelo menos ao som da música das recordações, com as suas bonecas que dão cor à casa como espectadoras na sua história de vida de espectáculo.

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