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01 MAR 2017
Carnaval todo o ano
Por Jornal Abarca

O poeta modernista Manuel Bandeira celebrou o Carnaval. Na sua obra, o II livro publicado intitula-se Carnaval, antecedido de voluptuosa e pungente epígrafe. Da leitura dos seus poemas cuja motivação é o feérico carnavalesco eivado do negrume solitário após fenecer a cintilação, reafirmei a ideia de podermos conceber o Carnaval todo o ano de modo a suportarmos a pantominice entrudeira que nos avassala os sentidos e os sabores.

O poeta cultivava a exaltação dos sentidos numa paleta de sabores onde predominava o denominado bom gosto em qualquer ambiente e defronte a qualquer comer, aliando a efusão báquica própria da efeméride à melancólica exigência de cuidados a ter dada a tuberculose o apoquentar a todo o tempo, não obstante viveu 82 anos tecendo casulos de observância e temperança.

O notável poeta nunca necessitou de recorrer a poetas mortos a ampará-lo, deleitava-se a trabalhar duramente na oficina poética, desse prolongado ofício resultaram frementes poemas a proporcionarem-me gozos estéticos a que não raro associo um bom vinho, se fosse de má qualidade estaria a ofender a memória do esteta também crítico de arte, professor de literatura e apreciador de comeres preparados e temperados a precito.

Agora, nestes tempos de Carnaval todo o ano, o Entrudo ganhou o cosmopolitismo massivo e normalizador, perdendo as singularidades ou especificidades de cada região, terra, bairro, até rua ou casas. A sazonalidade alimentar deu lugar à globalização, o problema não reside nessa realidade, ele está no facto de as ditas especificidades estarem a ser soterradas em muitos casos beneficiando dos apoios do poder político.

Não sou nem podia ser contra o multiculturalismo, nem o minimalismo, tenho de ser contra o abastardamento das representações culturais de antanho seja no tocante a comeres e beberes, seja no domínio da música, do teatro, do canto e da dança. E, pergunto ao leitor: acha que o nosso património imaterial e material está a ser bem defendido?

Naturalmente há sempre por toda a parte pessoas a vislumbrarem intenções ocultas quando confrontadas com interrogações tendentes a avaliar o seu grau de conhecimento da geografia, da história, dos vínculos dos sítios onde nasceram ou vivem. O Presidente da República no decorrer de um debate realizado na Antena 3 acentuou o papel da história na defesa da nossa herança cultural. E, repetiu: nós temos História. Temos sim senhor! Já defendê-la, coerentemente, é questão bicuda, não na esfera da demagogia, fora do cinismo dos sempre lestos a condenarem os nossos ancestrais. Tema a discutir seriamente na próxima campanha autárquica. Será que há interessados?

Só os presumidos e os lorpas não concedem a devida importância à comida, sabendo-a fundamental para a vida e a saúde, acoimam depreciam os apreciadores de vitualhas onde as matérias-primas e os produtos resultam em preparados comestíveis propiciadores de felicidade. Já o escrevi e volto a escrever: o refinado diplomata em todas as estações e situações políticas, o francês Talleyrand, ao ouvir o monarca debitar conselhos e mais conselhos, respondeu-lhe afirmando precisar mais de caçarolas do que de instruções para convencer os diplomatas contrários no decorrer do demorado Congresso de Viena.

Embora se diga e pareça não existirem escolhos na manutenção de um animado Carnaval durante os doze meses do ano em Portugal, caso não exista cuidado e esforços no tocante à defesa das matrizes culinárias de várias regiões elas tendem a fenecer favorecendo outras, as de maior peso económico e preponderância mediática.

O leitor fará o favor de anotar e pensar nos indicadores referentes ao turismo durante o ano passado, verificará o gigantesco peso do litoral em geral, de Lisboa no particular. Sendo assim, e é, não necessitamos de obter um diploma na Universidade de Vassouras (Brasil) para intuirmos o progressivo aumento nas cartas de comeres das receitas «típicas» gerais a afugentarem as locais de custo mais elevado em ingredientes e mão-de-obra. Reparem no apagamento ou desfavorecimento de preparos culinários a necessitarem de arte, tempo e forno, perdendo no confronto com as grelhas e demais parafernália existente nas cozinhas.

Não, não estou a aludir aos fornos a lenha, nem aos de cozer pão, tanto uns como os outros formidáveis no sublime apuramento de inúmeras receitas culinárias, refiro-me ao costumeiro e vulgar forno dos fogões a gás ou a electricidade. Maioritariamente estes fogões só são lembrados na altura de se conceberem doces e lambiscos.

Os leitores de maior idade recordam-se das iguarias preparadas nos fornos de cozer pão, os usufrutuários da idade madura das concebidas nos fornos a lenha ou a carvão nas casas de maior idade, trazer a terreiro tais fornos e fogões é mero exercício de apaziguamento da memória. Nada mais.

Os apregoadores das vaidades comezinhas deste ou daquele restaurantes não se comprazem a observar as cozinhas e demais equipamentos, a estudarem as ementas e cartas de vinhos, a avaliaram a relação qualidade/preço, fúteis e louvaminheiros gabam por gabar, elogiam ao modo dos tolos a arfarem porque lhes puseram à frente papas e bolos. O Arlequim ao longe verte lágrimas ante o degradado Carnaval todo o ano a empobrecer os vigamentos e vínculos singulares de cada aldeia, freguesia e concelhos das regiões.

O pregoeiro anuncia novo evento (assim se diz) a apresentar ao virar da semana. Só que não é novo, muito menos original e telúrico! Os pafós aplaudem.

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