Este ano não vou comemorar o 25 de Abril.
Todas as promessas dos bravos militares que devolveram a liberdade ao povo português foram cumpridas. E até, quer-me parecer, têm sido paulatinamente desmontadas, peça a peça, com meticulosa eficiência.
O 25 de Abril foi.
Já não é.
É uma data. Como o 5 de Outubro.
Para se comemorar devia haver um projecto, um desígnio a cumprir, um sonho a concretizar. Sempre que assim foi, o povo interessou-se e lutou por atingir os objectivos. Desde a conquista do território, a empresa dos descobrimentos, a reconquista da independência, a instauração da República, a liberdade que a ditadura cerceava.
Desmantelado o Serviço Nacional de Saúde, que se tornou um quebra-cabeças de taxas e códigos e esperas asfixiantes para consultas e exames; desmaterializado o projecto de ensino gratuito e tendo-se nivelado por baixo a exigência na cultura; desnorteada a Justiça que perdeu a ampulheta ou lá que mecanismo usa para medir os prazos; reduzida a informação a notícias repetitivas de tiros e facadas, onde está o projecto?
O único objectivo disponível e lógico é atingir a pobreza completa. A do espírito e a dos bens.
Ficamos pobres.
Mas ainda não o suficiente. É preciso que sejamos todos totalmente pobres.
É esse o desígnio?
É essa a luta que se segue?
Conheço alguém que respondeu ao meu conselho para poupar esforços pela sua saúde que lhe era impossível - ando aos frangos!
Perante os meus olhos redondos, explicou que trabalhava numa empresa que tinha aviários em todo o país e era preciso apanhar os frangos, que fugiam muito.....e ganhava o salário mínimo. Uma outra que não podia perder peso porque trabalhava sentada, sempre sentada, pintando olhos e bocas em imagens da senhora de Fátima.....só olhos e bocas há mais de vinte anos! E também pelo salário mínimo.
Quando todos ganharmos o salário mínimo, comemoremos.
Até lá, é reduzir o sonho à proporção dos olhos e bocas e apanhar os frangos que fogem.....
É urgente um novo 25 de qualquer mês para restaurar o sonho!
Liberdade
Viemos com o peso do passado e da semente
esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se ataca na torrente
e a sede de uma espera só se ataca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
só se pode querer tudo quanto não se teve nada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
a paz o pão
habitação
saúde educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir.
Sérgio Godinho (Porto 1945)