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01 MAI 2017
Eu tenho esperança. E vocês?
Por Jornal Abarca

Abril devolve-me a esperança. Devolve-me o que o verde da bandeira republicana transmite. Esperança num novo país, mas também num novo concelho.

Nasci num concelho onde o trabalho muito significa para as suas gentes. Os que nasceram e foram criados com todos esses valores enraizados já são poucos: direi eu que faço parte, com toda a certeza, da última geração. É natural. Alcanena, no seu auge de desenvolvimento, recebera muita gente de fora para empregar na indústria, o que poderá explicar – ou não – a falta de iniciativa do seu povo.

No entanto, o que quero aqui partilhar convosco é uma memória minha, escrita há cerca de um/dois anos, que encontrei e que vocês vão entender o porquê da sua partilha:

Lá do velho cabeço do Zé Marrada, sítio onde fui criado, pelos 3, 4 anos de idade, via-se a linha do Miradouro que ladeava o casco velho da vila como se de uma muralha se tratasse. Dele, igualmente se viam as velhas fábricas do Matafome, do Caetano, do Joaquim Inácio e do Baptista, rodeadas pela recente arquitectura industrial do Mota e da antiga fábrica do Filipe Correia. O tanque velho, que em tempos medievais, mais em cima, deu de beber às bestas que passavam no caminho do concelho, cruzava-se com o curso de água que abastecia toda a indústria da baixa velha de Alcanena: o Rio Açude. O som, que outrora era o bater da sola, fora substituído pela maquinaria, pelos cilindros, música essa que envolvia a vila. Mas não era só o barulho das máquinas. As sirenes, que tocavam às oito menos um quarto a avisar a hora da chegada do dia de trabalho, era o início da jornada para a maioria dos trabalhadores, contemporâneos a outros que entravam duas e três horas antes. O anseio geral era esperado: um toque ao meio dia, hora de descanso e alimento; outro toque à uma menos um quarto, de aviso; e outro à uma, de retorno. Era assim a continuação da jornada que ansiava chegar ao fim, para muitos, às dezassete; para outros, às vinte.

O que eu gostava mesmo de apreciar, sossegado e na calma daquele recanto, era esse som e a imagem que o trânsito, vindo de todos os sentidos, originava naquele cruzamento às cinco da tarde. Era a força viva daquilo a que se pode chamar concelho.

Chegou o tempo de ir para a escola. A escola dos grandes, lá no alto da Chã. A primária. Lá ia eu, de manhã, a descer as escadas em direcção à rua do Mota. De um lado, estava o Joaquim Abel, que com um sorriso e um cumprimento me dava os bons dias; do outro, o Joaquim José, igualmente ofertante. Passar por aqueles armazéns grandes, por aqueles escritórios fabulosíssimos e arquitecturalmente extraordinários, fascinavam-me. Igualmente me dava prazer subir ao Caturra e ver a mesma paisagem na perspectiva contrária. E assim ia eu, a caminho da escola, com o som do trabalho a acompanhar-me quase até ao Lavradio, onde todos os dias dava, com olhar alteado, os cumprimentos merecidos à torre dos Paços do Concelho.

Hoje, no mesmo lugar, no velho cabeço, observo a mesma paisagem. As fábricas velhas fechadas e abandonadas. O trânsito, às dezassete, fluído. O som... Esse desapareceu. Resta a velha sirene do Inácio que, persistente, vai dando às velhas vivalmas recordações de outros tempos.

A memória, essa, permanece nos mais velhos. No sangue daqueles que trespassaram, hereditariamente, de geração em geração, a arte de curtir. Até em mim foi assim. De entre as linhas perdidas da memória, reencontro cinco gerações que viveram, intensamente, a fonte da sobrevivência. Entre eles, encontram-se curtidores, operários de gancho, patrões, sindicalistas, conscientes políticos... Gente que deu o seu sacrifício à coisa que hoje, certamente, mais lhe honra: o trabalho dos curtumes.”

Esta memória evoca, claramente, uma criança que, desde cedo, aprendera a saber o significado do 5 de Outubro de 1910, do 8 de Maio de 1914 ou do 25 de Abril de 1974, esperando um futuro sorridente para a terra que a viu nascer. Hoje, infelizmente, não passaram de utopias de alguém próprio que, romanticamente, estima a sua pátria. Lembro-me, com todo o carinho, de embeber todo este bairrismo nas conversas que mantinha quando passava por aquele que chamo de último grande alcanenense, já falecido, Joaquim Inácio Bento Júnior. Lá estava ele, na praça, sentado num dos bancos junto às laranjeiras... Lembro-me de como foi, para mim, muito estimulante a realização do colóquio para os alunos da EB1 de Alcanena, em Maio de 2004, onde a História, o património e a natureza, ao âmbito local, foram temas que estiveram em contacto com todos estes futuros homens.

Ao ver um concelho onde o poder político está, cada vez mais, impermeabilizado pelo show e pelo mediatismo, busco em todas estas memórias – fazendo também, em simultâneo, uma retrospectiva pessoal – esperança para fazer honrar todos aqueles homens que construíram uma Alcanena melhor.

É tempo. Mas nada se faz sozinho. Eu tenho esperança. E vocês?

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