Alverca, 20 de Maio de 1977
Estranha coincidência. Terá sido por aqui mesmo (Ribeira de Vialonga) que nesta data, em 1449, baixou um denso nevoeiro que até hoje não levantou. E talvez nunca levante sobre a Batalha de Alfarrobeira.
Sabe-se que o Infante D. Pedro e o sobrinho, D. Afonso V, andaram por aqui num dos primeiros episódios sangrentos de guerra civil em Portugal. Acabou com D. Pedro trespassado numa valeta. Um episódio, talvez o mais trágico da nossa história (como Herculano tanto lamentou, pena nunca fosse posto em verso ou teatro), para lá da rainha ungida depois de esqueleto, a decantada tragédia de Inês de Castro, digna do Liebenstod de Wagner
E, no entanto, o palco teve personagens dignos de Shakespeare – de um lado, um dos nomes mais fortes da Ínclita Geração, talvez quem primeiro sempre teve uma visão europeia de Portugal e da necessidade da centralização do poder da Coroa: o Infante D. Pedro. Do outro, outro tio do jovem rei e meio-irmão de D. Pedro, Afonso, Conde de Ourém e 1.º Duque de Bragança que veio a ser sogro do Condestável, Nuno Álvares Pereira.
Fosse ou não fosse por sofrer dos complexos de filho bastardo de D. João I, sabe-se que espalhou todo o tipo de calúnias e conjuras contra D. Pedro. Não era de admirar - quando este é regente durante a menoridade do sobrinho, D. Pedro tenta disciplinar as regalias da Nobreza e da Igreja, controlar o orçamento real, cortar as unhas a bom eito mas não bom efeito. Sabe-se: poucos dias depois de Afonso V assumir o trono, as leis emitidas por D. Pedro são todas revogadas, o Infante cai em desgraça e parte magoado para Coimbra. Mas não é o suficiente – o Duque de Bragança, apoiado por parte do clero e da nobreza, convence o sobrinho que o meio-irmão vai organizar outra conjura para derrubar o rei e este é aconselhado a intimar D. Pedro para que venha à Corte prestar vassalagem - um simples pretexto para o prender.
D. Pedro sente-se injustamente atingido, jura ser fiel ao sobrinho, mas vem para Lisboa com as suas forças para se explicar. Não chega a haver explicação alguma - tudo acaba num banho de sangue às portas da cidade. Até aqui, sabe-se o que se passou. O que até hoje não se entende, é o resto.
Para já, não deixo de pensar senão é um vício de cromossomas portugueses. Apenas 64 anos depois de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385), mal arrumada a casa, andamos à garrafada no quintal nacional, por conta de questiúnculas e invejas, o que seria de encolher os ombros senão acabasse em mortes. Afinal em Aljubarrota, D. João I suou como poucos para manter Portugal independente e ainda foi preciso o Condestável ter ido primeiro mandar os espanhóis dar meia volta em Atoleiros (1384) e Valverde (Outubro de 1385). Mais: na verdade, ainda nos últimos anos de D. João I e breve reinado de D. Duarte já tínhamos ido a Ceuta (1415) e deixámos o pobre do D. Fernando morrer em Marrocos (1443).
Tudo somado, nada mais lógico do que não andar agora, menos de seis anos depois do pesadelo de Fez, à pancadaria aqui no burgo. Mas não, tínhamos que afiar as facas de novo. Para quê?
Pode parecer pergunta do Borda d´Àgua mas não o é.
A grande diferença fica por conta de um ausente - o grande ausente-, quem, certamente, esteve na cabeça de todos os que forjaram, espalharam, reagiram e lutaram em defesa e contra as calúnias.
Até hoje, tanto quanto sei, não se encontrou nem um documento que nos diga o que pensou, fez ou disse, sendo além do mais, irmão de sangue de um interveniente, meio-irmão de outro e tio adorado do próprio jovem rei. E Mestre da toda poderosa Ordem de Cristo.
Porque ficou o Infante D. Henrique num silêncio tumular de faraó egípcio, sem mexer uma palha, sem fazer um gesto, sabendo muito bem o que se ia passar?
Se os historiadores batem neste muro e se descabelam por não terem resposta, não é por isso que não valem hipóteses que fazem sentido – Damião Góis, Herculano, Oliveira Martins, António Sérgio que o digam. Seria que D. Henrique já tinha de alguma forma manobrado as frustrações do meio-irmão Afonso (como se dizia na época, “filho bastardo é sempre um cardo”),sabendo do perigo que constituia a inteligência de D. Pedro, mais a mais por ser contra gastar tanto dinheiro naquele “disparate” de navegar costa africana abaixo, porque bem vistas as coisas, o futuro estava na Europa?
Ou porque fosse quem fosse que se aleijasse a sério, num bom exemplo do “Príncipe” de Maquiavel, o Infante D. Henrique, só teria no fundo a ganhar com esse viciado dolce fare niente?
Se fosse o sobrinho que fosse desta para melhor, ganhava D. Pedro, fechavam-se alguns taipais na poderosa Casa de Bragança, mas iria abrir-se uma crise nacional de todo o tamanho. E se não o matasse, ia desterrá-lo? Iria D. Pedro assumir o trono?
Se assumisse, passava a ser o sucessor por ser o filho mais velho de João I e por D. Afonso V ainda não ter filhos, mas verdade se diga que o retrato que nos chega de D. Pedro não aponta para tal tipo de ambições até porque iria ter contra si o resto da Nobreza e do Clero. Mais do que nunca iria precisar da ajuda do próprio irmão, o Infante D. Henrique. E este naturalmente poderia cobrar “o seu preço”.
Se ganhasse o sobrinho (como ganhou), D. Henrique teria o caminho aberto para enfunar as velas a caminho da Guiné e mais além, até porque o juvenil Afonso V, o que queria era glória ali mesmo no norte de África, ao pé de casa. Ao que parece, achava uma certa piada àquela história de Sagres, mas nada que lhe tirasse o sono.
Seja como for, a vingança não demorou por aí além – seis anos após Alfarrobeira (1455), nasce o filho de Afonso V, de seu nome D. João II.
Príncipe ou não Perfeito, para além de odiar a intriga palaciana e clerical, viu muito bem onde os falecidos tio D. Pedro e meio-tio D. Afonso, tinham querido chegar. Encarregou-se de cortar as unhas da Nobreza e da Casa de Bragança a partir de 1481. Até ao sabugo. A começar por mandar cortar a cabeça do próprio chefe da bragantina casa. Foi preciso chegar a 1640 para a Casa de Bragança voltar a levantar a crista.
Mas nada dissolve este denso nevoeiro que continua a pairar sobre Alfarrobeira. Uma coisa parece certa – a divisa de D. Henrique, talent de bien faire, aplica-se muito bem mesmo.
Aliás, muito melhor, do que se pensa à primeira vista. Il a três bien fait, sans doute.