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01 JUN 2017
STARRED EGGS, BITTE
Por Jornal Abarca

Voo de Lisboa para Munique, Setembro de 2011

Mal me sento junto à janela do lado esquerdo neste voo sempre criminosamente matutino (5 e 45 da manhã!!!) de Lisboa para Munique, vejo-o entrar com ar meio dominador, tipo valete de espadas à espera de promoção a rei do naipe. Senta-se à janela do lado direito e, sem vizinho na assento ao lado, aproveita para espalhar a “mobília” no lugar vazio - computador, pasta, jornais, dois telemóveis, pacote de cigarros, canetas, óculos escuros, uma catrafiada das antigas.Humm, sendo assim, vale a pena analisar a figura, infelizmente aprendi muito à minha custa de zoologia humana, uma prima direita do descasque de cebola, nunca falha, cada rodela, um estrato.

O raio X não é dificil – todos os sintomas de um fauno nacionalérrimo (20 e tais, 30 e poucos?), gestor, empresário ou o que o valha nas atuais variações da lusitana cepa. Está nitidamente emoldurado na fome do sucesso, embaladinho nos aconchegos de classe média-média, mas já com o sebastianístico pé no degrau para a fase dourada da média-mais que vai de um BMW Turbo com GPS universal; àgua mineral Perrier; clube de golfe da Quinta da Marinha e ténis no CIF de Monsanto; deve adorar advérbios de modo (realmente, absolutamente,analíticamente), passar férias nas Maurícias ou em Pau-Chan Lau; deve colecionar secretamente edições vagamente antigas do Kama Sutra, (ah, essa delícia de posições acrobáticas!, bem que ele gostaria de as tentar mas temia acabar numa cirurgia da espinal-medula).

Acrescentem-se um ou dois Mestrados, diretamente proporcionais entre os títulos de linhas oficiais e gordas e a efetiva estatítica dos orgasmos causados num elefante quando acasala apaixonadamente com um mosquito minusculus anenicus etestreitinhus de Lineu, tudo seladinho e lacrado via Bolonha-sur-mer, uma tese e peras. Como disse acima, se parece um valete de espadas “à espera”, deve ter os seus sonhos totalmente enaipados - mais uns tempos e chego a rei das ditas espadas mas também de paus, copas e sobretudo, de ouros, ouros, meus ricos OUROS!

A figura? Um metro e setenta por aí; orelhas à espera de elogios; tatuagem muy  discretitamas ali voava no pescoço, uma joaninha voa-voa-que-o-teu-Pai-está-em-Lisboa; testa sempre enrugada que as preocupações são muitas; nariz meio empinado, talvez por vir em Business Class (tásse muita bem, não tásse?); olhos atentos sobre si mesmo; colete acizentado, cópia barata de Ascot; blazer azul escuro de botões metálicos dourados com âncoras (aqui de meio longe, parecem de cacilheiros); gravata Hermés de seda às riscas petiscas feitas ariscas; relógio Patek Philip de fundo azulado a combinar com o blazer; telemóveis da última geração (não sei qual é, desculpem); sapatos com bicagem talvez de Gucci ou Malzonne; perfume algo enjoativo de Aramis, ei-lo todo triques-triques à beirinha da janela, ecce homo sincopatico.

Por mim, sou suspeito para falar, mas lembro-me bem do que dizia o meu Pai – muitos os que parecem uma mesa muito bem envernizada, parece mogno de pura lavra, mas mal se lhe faz um risco, salta logo o amarelado desmaiado de pinho de Pucariças de Cima, no mínimo.

Enquanto não lhe descubro o verniz, ele mostra logo ao que veio - mal se sentou, faz de imediato umas ligações “urgentes”, mas aparentemente sem resposta, recita umas mensagens para a gravação, dedilha uns SMS, afinal são as horas que são, os destinatários dormem o justo sono, querem lá saber dos recados dele. Depois abre o computador, atarefadíssimo, luzinhas blip-blip no écran, a música do Windows, que diabo Tóquo já abriu a bolsa há muito e não sei de nada. Hélas, o som chega aos ouvidos da hospedeira que lhe diz delicada mas firmemente o que já se sabe - enquanto o avião não levantar, tem que ter tudo desligado. Resmunga entre dentes mas aceita, que remédio.

Mas a alternativa não é nada sedativa - abre a pasta, tira relatórios, folhas e mais folhas, ah, a análise dos fluxos de caixa, margens de vendas, rácios de endividamento, saldos líquidos de produtividade, custos internos de reciclagem técnica, tudo ali nos mapas, sente-se senhor dos destinos empresariais, quase que se lambe de volúpia numérica, power to the brains, power to the numbers! Olha para o lado satisfeito mas fica meio desiludido, bolas!, ninguém tem curiosidade, ninguém lhe liga nem um quarto de pevide, todos enfiados numa revista ou a olhar pela janela. E quanto a mim, espírito malévolo, a gozar pelo canto do olho que nem um cabinda (cabinda dos genuínos).

E assim foi na meia hora que se seguiu. Levanta-se voo, sobe-se sobre a ponte Vasco da Gama, vira-se para norte, faróis-piloto de Coimbra, Guarda, Salamanca, Andorra, Pirinéus, já sei o itinerário de olhos fechados por mal dos meus pecados. Quanto a ele, coitado, bem tenta chamar as atenções mas ninguém está para aí virado, uma injustiça, uma cabine de Business Class meio-cheia mas toda profissional e zero-zero de alguém lhe passar cartão. Quando chega o pequeno-almoço, queixa-se à hospedeira de que a omelete está meio seca (a minha estava ótima) e pede outra coisa:

- Please could you provide me with Starred Eggs?

A hospedeira alemã fica perplexa, porque nem o implacável curso profissional da Lufthansa lhe ensinou o que são starred eggs.Aqui está o verniz em brechas, foi fácil, percebi logo, viva o espírito de Natal, caritas, caritatis, viro-me para ele e para a hospedeira e faço a retroversão,

– Desculpe, “fried eggs” ou “sunny side up eggs”, é assim que se pedem ovos estrelados, sendo que o “sunny” é a forma usada nos States.

Ele balbucia um “obrigado”, tão enfiado que parece querer dar um nó em fio de água, alguns viram-se e sorriem. E nem a hospedeira consegue deixar de o esboçar mas compôs-se rapidamente num ar ultra profissional, lamenta mas é impossível, não se cozinham ovos a bordo:

- Talvez o senhor queira o menu alternativo de salsichas e bacon?

Bom, não havia baratas no avião porque senão ele seria um sério candidato à metamorfose de Kafka, atingido em cheio no blazer, Hermés de nó corredio solto e âncoras douradas enfiuzadas; o portátil de goela escancarada e vazia; telemóveis desligados; papelada a que ninguém ligava; de nada lhe serviam agora os sustentáculos da sua importância tão anunciada mas que o estatelavam em desalentado e ridículo anonimato. Tudo por causa de um ovo estrelado, francamente!

Tive pena - claro que ele estava pior que muitas das pobres das baratas, essas nobres sobreviventes dos Austrolopitecos, Neanderthantais, Altamiras, Gizés, Babilónias e que ainda hoje ignoram soberanamente softwares e ponteiros de quartzo e sílica magnetizada, ave, baratas, eu vos saudo! Seja assim ou assado, cinco minutos depois quis vingar-se do vexame, aperta o botão para chamar a hospedeira e queixa-se que o café está frio, quase gelado. A hospedeira levanta uma centelha rapidissima de ironia mas traz logo outro café, a fumegar. E ele, na ânsia de dar finalmente um toque de naturalidade, queima primorosamente a língua, opus chiça em dó maior para gáudio (comedido) da senhora e (muito menos discreto) da minha parte e dos meus vizinhos, embora virassemos logo a cara para a janela para disfarçar.

Hecatombe, o nosso herói fica vermelho que nem um tomate (falo do precioso vegetal, atenção!), sem alternativas de maior, hibernou-se num silêncio embirrativo, o típico silêncio de ponta de língua ardida, sabem como é…

Mas bolas, acabava a festa, estávamos a aterrar. E a desforra do nosso fausto executivo veio logo ao de cima – mal sai da manga de ligação da porta do avião, clique-clique, pufff, acende regaladamente um cigarro, com um Dunhill, de ouro cromado, uma beleza de design, insufla a nicotina que sobra do filtro extra longo. Bronca prussiana das antigas: – Ordnung!, Ordnung!, rauschen verboten, é proibido fumar! Dois polícias mais um comissário de terra, em ordens secas mandam-no apagar o cigarro IMEDIATAMENTE, pedem-lhe o passaporte, e ein-zwei-drei, vão levá-lo para a esquadra do aeroporto. Ach,pelo que ouço, vai ser multado em pelo menos 1.500 Euros.

Foi demais. Pobrezinho do luso, apagou-se-lhe a prosápia, pior que uma moção de censura aprovada pela oposição para derrubar o Governo. Pede desculpa num inglês estropiado, sôrri, sôrri,aí dêdenóte nâu ái cudenóte semôque híer, suplica, quase que geme, sente-se a pisar ovos de Aveiro sem custódia, desculpem, tenho um voo de ligação urgente para Zurique, vou perder uma reunião muito importante, eu não sabia…, sôrri, êntexulding zi.

Pois, sim, está bem, das tut man nicht, verboten(isso não se faz, é proíbido),lá vai no meio de dois guardas espadaúdos e lourinhos, vão-lhe passar a boa da multa e já agora ver nos computadores se tem antecedentes. Uma assistente apiedada, assegura-lhe que há muitos voos de ligação e que além do mais, pode pagar a multa com Visa ou Mastercard. E assim podem pensar que acabou o episódio do star-eggs.Desculpem, não, não acabou – os cigarros e o isqueiro de luxo foram logo confiscadinhos, ali, numa beleza, em direto e na chinfra. Mas, que diabo!, vamos lá puxar pelo patriotismo, bem vistas as coisas, até teve sorte - questão de simples aritmética.

Explico - se se aplicasse o sistema de multas a estrangeiros em aeroportos, estações ferroviárias e portuárias, discutido no parlamento alemão nos anos 80, a multa seria de 1€ por metro da maior altitude do país desse estrangeiro (juro!), mas que graças a Deus nunca foi aprovado.

Ora, ele pediu ovos estrelados. Estrelados, estrelados, cheira à Serra da Estrela, o nosso cume mais alto, apenas com 1.991 metros de altura. Se o sistema estivesse em vigor, em vez de 1.500 Euros, pagaria 1.991 Euros, ou seja, ainda ficou a ganhar €491, nada mau. Há sempre um mal que vem por bem, mas para quem não saiba as regras do jogo, peçam chá com torradas no próximo pequeno almoço aéreo. E não risquem ovos com estrelas do menu.

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