Home »
01 AGO 2017
Estou farto de semideuses
Por Jornal Abarca

Não tenho vontade de falar de fogos. Nem de roubos de armas. Nem fobias variadas. Tem sido o entretinimento da imprensa nos últimos tempos e já tudo foi dito. O verdadeiro e o falso. O falso que passou a verdadeiro porque "ouvi na televisão".

Apetece-me falar de falsidade. Da ligeireza com que se esmagam valores fundamentais da urbanidade, do civismo, da convivência sã na sociedade em que todos somos obrigados a viver. Não se pára para pensar. Não se pensa de acordo com o que uma maioria determina e vira-se um espantalho oco, quase imbecil. Em segundos. Não interessa se se viveu nem como se viveu uma vida inteira sacrificando apetites a uma moral que serve a todos. E para sublinhar que se é velho e ignorante inventam-se mentiras toscas que qualquer wikipédia pode desmentir num ápice. Os heróis deste drama, tragédia, sei lá... não irão muito longe, mas do velho, corajoso e verdadeiro, ficará para sempre a glória profissional, as conquistas desportivas e a lisura de trato. A sociedade vai-se desfazendo como todas as que chegaram ao fim, se desagreguegará sem honra nem brio, moral e socialmente. Nem o fogo que come florestas será suficiente para limpar todo o nojo em que estamos a chafurdar alegremente.

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa (1888-1935)

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
 73%     Sim
 27%     Não
( 367 respostas )
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design