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01 SET 2017
M. R. Cordeiro: um inédito
Por Jornal Abarca

Tantas vezes a poesia me deixou atónito ante um mar artificial de lágrimas e olhos manifestando o peso todo do universo.

Ele estava em casa, ela olhava-o, entre os dois havia o que se chama poema: o sol ia e vinha, a noite eram palavras e o mundo rodava demasiado depressa para não ser possível haver o que se chama amor e vozes gritando: poesia, poesia.” (Texto de Mário Rui Cordeiro, escrito algures na segunda metade dos anos 70 do século XX).

Um destes dias, remexendo em coisas antigas, encontrei um caderno encadernado pelo Mário Rui Cordeiro (MRC). Trabalho realizado por si, e que me foi “oferecido”, “em troca” de uma outra coisa qualquer.

Até ao dia em que remexia nessas coisas antigas, sempre achei que o livro (foi assim que ele o classificou) só tinha páginas em branco (situação que está associada à própria história da troca),… Mas não,…

Por alguma espécie de pudor, nunca escrevi muito nesse “livro branco”- como passei a chamar-lhe: meia dúzia de coisas, a que só o tempo terá dado alguma importância na minha cronologia pessoal.

Sempre preferi as páginas em branco, como se elas me mostrassem coisas escritas pelo próprio M.R. Cordeiro. E não foram poucas as vezes em que consegui imaginar a sua prosa naquelas folhas. Bastava-me tocar o “livro” para sentir o pulsar do MRC e as inúmeras histórias que aquelas páginas em branco podiam conter.

Dias depois de ter encontrado o livro voltei a manuseá-lo e para minha muito grande surpresa, em três páginas, bem escondidas no seu interior, estava um texto escrito pelo Mário.

Afinal, aquilo que eu tinha por imaginário: palavras suas fictícias, num livro real,… Enfim! estavam mesmo lá.

Embora se possa pensar que existem muitos inéditos do M.R. Cordeiro, atendendo ao seu processo caótico de criação, datá-los e situá-los nalgum dos seus períodos criativos mais consistentes, não será fácil, nem as oportunidades de que tal aconteça serão frequentes.

Encontrar estes pequenos textos, literalmente, no meio de nada (de que o primeiro parágrafo deste artigo é um pequeno exemplo) leva-me para patamares (sombrios) de reflexão sobre o talento e o desaproveitamento que dele pode ser feito.

Um dia escreverei aqui sobre o Mário Rui, saindo da auto-estrada dos lugares comuns, para me embrenhar nos caminhos secundários, quais vazos sanguíneos que ajudarão a perceber o que foi que, afinal, lhe aconteceu, para o talento se transformar num imenso vazio, de tonalidades várias e, muitas vezes, imperceptíveis.

Sobre o Mário Rui, na sua multiplicidade, de escritor, de poeta, de pintor, de “clochard”, de visionário,… está tudo ou quase tudo por dizer.

Porque, sobretudo hoje, um sentimento de culpa colectivo devia atravessar –mas não atravessa - uma cidade (vazia de afectos?...) que viu um dos seus melhores (talentos) afundar-se num abismo: onde ninguém está livre de mergulhar -sem nada fazer para o impedir - ou até criando as condições para que a sua dimensão fosse ainda maior.

Esta não é, ainda, a crónica que eu hei-de escrever sobre o Mário: que será mais sobre o quem foi e o que representou para Abrantes, num momento concreto, esse rapazinho a quem, com a irreverência (ou subtileza maldosa/bondosa) que só os putos possuem, grafámos, para o futuro, com o anexim de Scarface.

Num dos pequenos textos deixados (por acaso? Ou à espera desta descoberta serôdia?) no livro branco, escrevia o MRC:

Falando de morte escreveu dezenas de páginas, olhou em direcção dum rio que não existia, bebeu cerveja.

Acabou por odiar toda a linguagem e tentou regressar.

Aproximou-se assim mais dum crepúsculo que já se adivinhava na sua última obra.

Contemplou-a com o seu próprio esquecimento e continuou ausente.

Obrigado Amigo, pela partida que me pregaste. Um dia destes voltaremos a encontrar-nos: chez Annick?...

 

estevaomoura@yahoo.com

*Antigo aluno da EICA; Ph.D.- Univ. Lisboa

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