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01 DEZ 2017
NABOS, CENOURAS E CEBOLAS NAS BENÇÂOS DE SANTA ALBERTINA
Por Jornal Abarca

Mamarossa, Cantanhede, Julho de 1986

Paro à beira da estrada, à sombra desta ala de olaias folheadas num céu tão azul  mas temperado como o que a um Julho bem comportado se permite. A glória destes verdinhos que te quero verdes, semeados em serena geometria dos dois lados da fita cinzenta, leva-me a espetar o focinho nesta brisa com um vago cheiro a maresia. Não vim passar uns dias de férias a Portugal para fazer quilómetros, não somos um país para isso, graças à nossa pequenez rica nas minúcias – os cenários de 360 graus ficam por conta de Arizonas e Grand Canyons. Abro a janela, lanço os olhos gulosos à volta, encho os pulmões dos metros cúbicos de ar que me cabem na anemia de emigrante. Como de costume, salta-me o Torga – “somos tão pequenos que uma vida não chega para ver nem viver metade”, raios o partam, poucos disseram tanto em tão poucas palavras.

Pausa para meditar se Portugal não é realmente dos países em que é frequente encontrar médicos que, se usam batinha branca toda catita e estetoscópio ao pescoço, não iluminam apenas decoração funcional. Porquê o insulto? Não é insulto coisíssima nenhuma – é que para essa multidão clínica, os doentes serviram-lhes para o aparo, a caneta, o teclado, darem chicotada epidural no que de vidas existe para lá dos rituais e laboratórios. E fazem-no muito bem, melhor do que as terapias que lhe deram o canudo amarelo. Tema longo, desculpem, conversa própria da arritmia ventricular cíclica que alegremente me badala cá por dentro, já chateia, vai ter a sua piada quando desligar.  

A razão de estar aqui a catrapiscar linhas é que passa por mim uma pardalada de mulheres de todas as idades, chapéus de palha, blusas coloridas, saiotes meio arregaçados de antemão, lenço a servir de regaço, cumprimentam com ar de perguntar que raio estou aqui a fazer, saltam para o valado direito e lá vão duas a duas, a formigar pelas veigas. Pelos vistos vão apanhar nabos, cenouras e cebolas, um primor de colheita. Mas não é isso que admira – se a descascar espigas pela tardinha é clássico haver desgarrada à porfia, neste tipo de apanha meio sentadas à torreira do Sol, é a primeira vez que vejo e ouço. E não é cantada – ganha quem se lembrar de mais ditados e ditos populares, a partir de uma palavra escolhida ao acaso. Pelos vistos, a escolha cabe a uma velhota toda ladina, a tia Albertina. Palavra? Sorte.

Algazarra de protestos: - Sorte? Que raio de palavra é essa? Ainda se fosse Azar, esse sim, está sempre a acontecer. Mas sorte? Eu cá não tenho nenhuma!

A Tia Albertina não vai na fita:- Deixem-se de choradinhos. Então ninguém se lembra de nenhuma? Tudo cabeças de burras de tetas sem leite? 

Ao fim de uns minutos, lá se ouve alguém, ainda a meia voz: - Agora é tão pouca a sorte / que anda pelas portas da morte.

- Credo, rapariga, começaste bem! Olhem, por mim, a sorte de uns, é o azar dos outros.

Responde outra: - É verdade, sim senhora. Mas olha que asorte traz e faz parentes de que ninguém se lembra… Ao que uma voz esganiçada, lá ao fundo, responde - Mas o azar é que nos dá saudade / porque nos traz os amigos de verdade.

Desfiado o novelo, a memória coletiva das mãos que arrancam o nabal cenourento e descamam as escamas do ceboleiro, não se faz rogada. Chovem ditados:

- Se a sorte não te ajuda / apanha mel coado que ela muda.

- A sorte sempre acontece, a quem não a merece.

Risos à toa, zuca-zuca, cenouras e nabos desembocados da grelada, raízes desentrançadas do polvo das cebolas, dedos a voar tudo para os cesto de vime.

 - A sorte é como um raio – nunca se sabe onde vai cair.

- Credo! Vira a boca para lá! E esta?A sorte é uma cadela / mas tomara eu ter metade dela!

- Metade? Nem quartilho que fosse, se  levas muita sorte no alforge / rouba-ta o diabo ou o padre, num toca-e-foge.

- Isso não é nada! Quando a sorte é muita, até com anzol sem isco / se apanha cada robalo que é um petisco.

- Sorte ao amor é azar ao jogo / queres beija-flor / ou dinheiro no fogo?

Esta mereceu comentário da tia Albertina:

- Nem sempre, nem sempre, mulher! Olha o Alberto da Ricarda – já ganhou duas lotarias e tem mais ciúmes dele do que cardo fresco em dentes de burro novo. Por isso é que te digo, se a sorte te bate à porta, não esperes muito para a abrires.

Umas atrás das outras, um jorro e tanto de água fresca, perdi a conta. Mas já tinha escalado a Serra da Estrela - tem mais ciúmes dele do que cardo fresco em dentes de burro novo”,brilhante, não fui dar um beijo nas bochechas da Tia Albertina mas vontade não faltou. Mas isto não ficava assim, não me ia sentir bem. Saio meio hesitante do carro, aproximo-me do grupo, peço desculpa e largo rapidamente: - Obrigado, muito obrigado a todas. Aprendi muito hoje convosco, podem crer!

Se noto que nem todo o mulherio terá entendido, a tia Albertina percebeu, se percebeu! Pisca-me o olho matreiro ao ver-me regressar ao carro:  - Ora, não tem de quê. Desculpe lá, estivemos todas a grasnar que nem cotovias desdentadas. Mas não se vá embora sem ouvir a reza mais importante de todas…

- Qual é?

- A sorte é para quem a tem! E quem com ela não se veja… só lhe resta morrer de inveja,   

Foi demais. Existe Santa Albertina?

Entro no carro, desatino estrada fora, vou perguntar ao pároco ou bispo mais próximo. Senão vou ao Vaticano.

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