Levantava-se cedo e tomava o primeiro café do dia com a empregada, a Milú, que lhe contava em pormenor e animação cénica as últimas novidades da terra.
Naquela manhã, porém, a Milú estava triste, semblante pendurado, lágrima fortuita a escorrer devagarinho até à boca.
%u2015 Que é que você tem?
Muito a custo lá adiantou:
%u2015 É uma paixão, senhora doutora…
Suspirou.
%u2015 Uma paixão… Porquê? − disse, distraída, a seguir a marcha da guerra no canal das notícias.
Milú murmurou qualquer coisa inaudível e depois:
%u2015 … o filho da Rré-Rré…
%u2015 O filho da Rré-Rré?
Aquilo não lhe soou nada bem. A empregada vivia com o Lopes cozinheiro e agora estava de amores com outro? Vá lá entender pessoas que têm outra maneira de estar na vida…
− E porque é que você está triste? Ele não gosta de si?
− Ai, gosta! Vai para todo o lado atrás de mim.
− Então?!
− É que eu não sei como é que me vou sentir quando o matarmos…
E desatou a soluçar.
− Matar o filho da Rré-Rré?
− Então, senhora doutora, é um porco… − encolheu os ombros em desculpa irreflectida, limpou a face com as costas da mão vermelhusca.
À noite, depois de afastar o gato zarolho, as duas cadelas rafeiras e o lagostim de água doce para se conseguir enfiar na cama, a doutora desabafou para o marido:
− Sempre há gente… Gente tão habituada a conviver com os bichos que até a Milú se apaixonou por um porco!
Urgentemente
É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer
Eugénio de Andrade (1923 - 2005)