Associava-lhe a silhueta a Fernando Pessoa...sei lá...a timidez, o fato escuro e a gravata fininha, a ironia sibilina e a surpreendente bagagem cuultural. Primo Chico extasiava os convidados do almoço arrancando do desafinado piano da minha irmã um beethoven magistral e heróico e era apaludido com espalhafato. Conhecia todos os actores de cinema, mesmo os que só entravam para entregar um bilhete e grande companheiro desses filmes até no cinema ao luar no pátio do colégio.
Não se casava. O pai queixava-se sempre que nos encontrava.
Queria netos. Para quem ficariam as terras todas? A casa à beira do rio?
Um dia, chamaram primo Chico para a guerra. Foi despedir-se inusitadamente de calções e camisa da farda, conformado, triste. Um ano depois recebemos o convite para o casamento tão sonhado pela família. Dizia no seu humor que a noiva era apropriadamente muito mais nova que ele por precaução. Tinha de cuidar em não ficar sozinho...nós, daquela família, não suportavamos a solidão.
Tiveram filhos.
Uma família discreta e bem disposta.
A vida, pensava sempre que falavam neles, tinha posto as coisas na sua ordem natural e ainda oiço meu pai: "tudo tende para a normalidade".
E uma tarde, quando eu vinha a sair duma loja, cai-me litealmente nos braços uma mulher a soluçar. A mulher do primo Chico! A minha amiga de tantos anos. Soluçou-me que ia morrer. E soube mais tarde que fui a única amiga que recebeu até ao fim.
Primo Chico morreu sozinho.
Soube há pouco que os filhos venderam as terras....a casa à beira do rio.
“Paraíso”
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
David Mourão-Ferreira (1959-1962)