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20 DEZ 2017
J. C. ET SON NÖEL BOAFESTIVO EM PURA LAVANDA
Por Jornal Abarca

Washington, 21 de Novembro de 2000

- Mon cher Alex, Bonjour.  Juste pour te faire savoir que ton nom est sur ma liste de Cartes de Noël et de son parfum. Merci et à bientôt. 

O bilhete manuscrito. dentro de um mini envelope, estava na minha mesa quando cheguei de manhã. Fui premiado! J.C. é mais pontual que um cuco suíço do séc. XVII - 10 dias antes de despontar o cheiro virtual do peru recheado com puré de castanhas e de se ouvirem pelos corredores, os planos excitados de quem vai viajar, mile after mile e bump to bump, para as grandes reuniões de família da Ação de Graças (Thanksgiving), J.C. bate sempre à porta, a “avisar”. 

Desculpem a informalidade -  vamos a trocos? J.C. é o nickname (alcunha) de Jean-Claude Binard. À boa americana todos temos alcunhas, mas a dele é popular, só os novatos perguntam quem é, exceto um deles que pensou ser Jesus Cristo…, juro. J.C. é um dos colegas do Departamento. Jurídico, com quem me dá real gosto trabalhar e conviver, penso por aqui anda vai para 18 anos, nasceu naquele pedacinho de Europa chamado Québec, sócio fanático do clube dos solteiros, tem os pontos cardeais bem definidos – honesto (ao ponto de admitir que não sabe… quando não sabe); assume por sistema ser “aprendiz” quanto a opiniões de terceiros (“- Até quando se está a dar o último suspiro, se aprende”), mas a sua bússola aponta para uma inteligência invulgar, dono e senhor de cultura tão ampla como rara. Mas nem lhe toquem nesse “gigantesco fedor do esgoto de todos os esgotos que se chama Política” (“- Um político nada mais é do que um prostituto barato, viciado em 5 segundos de orgasmo, ao levar com os espermatozoides do Poder”). Leva também muito a sério tudo que sejam usos e costumes de Vale do Loire, França, de onde terão emigrado os avós. Foi curioso quando descobriu que, se estou a anos-luz de destilar Racine ou Corneille, o meu francês chegava para as pequenas encomendas - quando vem à minha sala ou almoçamos na cantina, é um torrencial verbal de galicismos tão oitocentistas que, por vezes, é duro castigo acompanhá-lo no dialeto quebéquois.  Herança do Loire ao que parece, J.C. sempre considerou ser a maior prova de honra e amizade incluir na sua lista de Cartões de Natal quem o merecesse, no real sentido DNA da palavra. Mas o tema é sério – 1º, ninguém sabe ao certo se é “premiado”, uns anos sim, outros não. Nem vice-presidentes e diretores escapam, e olhem que só aqui no Departamento somos 84, 38 nacionalidades. Ou seja, ao aplicar o seu Hegeliano critério de avaliação, J.C. é no fundo, um bom gestor de expetativas – se por um lado, toda a gente espera receber o tal “aviso” e depois ficar feliz e sossegadinho à espera do cartão, por outro, sobram infelizmente uns pós de mui cristã espionagem de bastidores (- Sabem que Beltrana não recebeu? Está pior que uma barata do Gobi… - Barata do Gobi? – Sim, o deserto da Mongólia, onde dizem só haver uma barata para cada mil Km quadrados, coitadas, passam os Natais muito solitárias…). 2º, ainda que alguns dos não contemplados tentem depois arrasar (Quero lá saber dos cartões dele!  Deviam era proibir esta Inquisição natalícia), a verdade é que nunca o Natal tinha ganho um motivo tão extra para celebrar as 3 semanas da praxe, J.C. de certa forma, não deixa de ser um braço direito do Pai Natal. E 3º, distribuídos os “avisos” eram poucas as pausas de café, para se enrodilhar entre os bem-aventurados a discussão sobre O QUE seria e COMO seria desta vez. Explico.

O QUE seria? Para princípio de conversa, os seus cartões de Natal não são pagelas de cartolina dobrada cheias de lugares comuns em que abunda a neve, pastores estremunhados com as trombetas de anjinhos rosados, fora os filosóficos camelos com reis magos ainda mais filosóficos e aquelas mensagens altamente literárias e que comovem – Merry Xmas, ponto final. Não, nada disso – ele concebe os cartões com alma própria, escolhe cópias de pinturas clássicas de primeira água (Fra Angelico, Bellini, Boticelli, Dürer, Raphael, Vermeer, são dezenas) e não contente com isso, catrapisca na página seguinte aforismos e citações do melhor que a literatura deixou –  Marco Aurélio, Bossuet, Keats, Frost, Joyce, Montaigne, Wordsworth e quantos mais aqui não cabem.Manda imprimir tudo em papel couché numa tipografia especializada, textos a azul escuro, revê as provas com minúcia de filatelista e envelopa para os endereços pessoais da sua lista, apenas uns 3 ou 4 dias antes do 25 de Dezembro. Tanta atenção e dedicação não podiam deixar de dar frutos - reproduções e textos tão impecáveis, com toques de arte de minúcia, garantem sucesso, todos guardam religiosamente os cartões e mostram a parentes e demais fauna apropriada. Claro que a seguir, sempre à boa americana, há logo quem queira comprar dezenas, os pedidos chovem-lhe na sala e telefone, mas dali nem sim, nem meias sopas. E faz bem - arte oferecida não se vende.

Mas como “quem bem faz, melhor deseja”, Jean Claude requintou : - Sabe Alex? Falta alguma coisa nos meus cartões…, o cheiro de Natal! Todo o Natal tem um aroma próprio e nunca repetido, é essa a magia. E os meus cartões, se não são cegos, parecem surdos-mudos…

Meteu mãos à obra, confessou que nos tempos livres gostava de fazer perfumes, passou a embeber os cartões num discreto odor de lavanda, um odor muito leve e fresco, realmente eram bem “natalícias”, acertou de novo.

Mas foi o que nos obrigou a dupla cautela: ao agradecer o cartão, nunca esquecer de elogiar a lavanda. Missão complicada porque se mudava anualmente o cartão, a lavanda também o era. Traduzindo - dizer no segundo ano que o perfume era mais suave do que a do ano anterior, tudo bem. Mas depois, ano a ano, ficou mais difícil o elogio. Por mim, lembrei-me das poesias de Racine e La Motte, “um fartote / cheio de sorte”, tudo  questão de catar umas estrofes, de as copiar no cartão de agradecimento, eram o que a nova lavanda me lembrava, acho que me dei bem.

Mas hélas, tudo o que é bom, acaba - sem apelo nem agravo, começou-se a enviar Boas Festas, Ano Novo, Boa Páscoa, Parabéns, tudo pela Internet, SMS, Correio Eletrónico e o que mais acontece e ora se padece. Adeus cartões, envelopes… e lavandas.

P.S. Calgary, Canada, 20 de Janeiro de 2009

Jean-Claude pediu a reforma pouco depois. Voltava ao seu querido Québec, ia deleitar-se no estudo de arte de Natal e com a alquimia das lavandas. Nunca mais disse nada, silêncio tão ensurdecedor que fui saber do paradeiro, vim hoje visitá-lo. Recebeu-me com um suave sorriso - deixou as leis, professou, dedilha agora o tranquilo rosário sob hábito franciscano num convento local, batizado como Frère Louis de Noël du Bon Dieu. Continua com os cartões que o convento vende e cujas receitas vão para um orfanato. De lavandas nada sei. Mas quando se despediu, deixou-me nas mãos um aroma que não se esquece. 

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