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01 MAR 2018
Visita que aquece
Por Jornal Abarca

Entrou-me hoje em casa uma visita especial.

De novo, surgiu a simples e amável informação maternal que funciona como uma chave codificada “Já podes levar a Senhora.”, sinal que passaram os dias necessários para que o retábulo possa seguir a viagem encetada.

Objetivamente, trata-se de uma caixa em madeira castanha envernizada, com duas portas em simetria que abrem lateralmente como um tríptico e uma terceira, por cima, que ao abrir forma um frontispício com a sigla JNRJ recortada na madeira encimada por uma cruz. Dentro tem a Nossa Senhora de branca pacífica túnica, expressão tranquila e olhar mesmérico, joelhadas a seus pés as crianças contemplativas. Tem ainda, numa reminiscência do “Do ut des” (dou para que dês) romano, uma ranhura na base do tamanho de uma moeda grande para donativos opcionais. No topo, uma pega dourada, que vaticina deslocações, para facilitar o transporte.

Não consigo deixar de pensar que é no mínimo peculiar a forma como o caminho se cumpre no itinerário díspar formado de uma rede de proximidades em que alguém amigo ou familiar a trará e outro da mesma forma a receberá, perdendo-se, por um tempo, nunca o mesmo, nunca marcado, num destino desconhecido, para, um dia, de novo, reaparecer no trajeto que a traz e leva. Só conheço uma parte do seu percurso, a outra some-se na consciência. Quando vem, sobe o monte, vinda da casa materna e paterna, de carro, descendo, depois, em mãos, acompanhando-me a pé (“para baixo todos os santos ajudam” – vulgo dixit) até, sensivelmente, a meio da ladeira de acesso a casa, altura em que a vizinha-amiga se apressa a vir recebê-la para, também ela, a transportar em mãos até à sua casa e nela a receber.

Ao chegar é acolhida num sítio reservado, num topo de um corredor, num peitoril de pedra, excrescência da branca parede, onde a luz chega coada pelo vitral que reproduz as flores do bordado iridescente de Castelo Branco, assemelhando-se a uma intuitiva capela, e tornar-se-á partícipe da rotina familiar por breves dias. Cumpre-se o ritual que é tradição. Acendo-lhe a urgente vela que a acompanhará enquanto cá permanecer e eu velar.

Na noite plúmbea, escura, fria e erma, penso com ironia que nesta casa onde a chama útil não existe, porque as novas tecnologias que consomem luz elétrica e não gás a não produzem, estão agora dois fogos. Um na lareira onde a recrudescer a crepitante madeira velha arde e aconchega o corpo e, no extremo oposto, a luz da chamazinha irregular tremula, aquecendo o que ainda há de alma. Abelha que matiza as sombras, o vulto da Senhora. Ambas aquecem, cada uma à sua maneira.

A Senhora, presença ubíqua, material e paradoxalmente partirá (mesmo que a vela não tenha ardido até ao fim, como as de Sándor Márai), de novo, no seu périplo, dirimir num ciclo que se repetirá, assevero, enquanto eu tenha forças para a acolher, levando o seu calor a outro fogo.

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