Naquela manhã, tudo era silêncio embrulhado em nevoeiro. Habitual num porto de pesca, em que se vivia de acordo com o regresso das traineiras a abarrotar de peixe. A vida era uma festa, mas de noite.
Nessa vila, para além da importante faina do peixe, havia um Forte que servia de prisão para políticos, pessoas que pensavam diferente do regime, assim como o meu pai.
O nevoeiro era assombrado apenas pela ronca do farol. Donas de casa passavam para as compras, conversando em bafos de neblina, aconchegando casacos ou xailes, sem pressas.
Eu tinha aulas apenas de tarde e, por isso, costumava ir ter com o meu pai ao hospital, ficava a observar tratamentos breves e à espera de irmos ao café.
O empregado varria a serradura, que espalhara adrede profilacticamente, com o vagar de sempre.
Um único cliente. Sentado. Direito e sereno. Impecavelmente vestido, no fato completo castanho, bela gravata de riscas vermelhas, camisa de seda e gabardina dobrada minuciosamente sobre os joelhos. Uma chávena, um prato que contivera provavelmente uma torrada. Ùnico e surpreendente. Iluminava o recinto, meio obscuro àquela hora.
Meu pai disse: − Cumprimenta o senhor general...
Ambos de pé. O general, mais alto que o meu pai e com um soriso sem tamanho, fez-me uma festa na cabeça, inclinou-se para receber um beijo na face macia, cheirosa e acolhedora. Tinha um penteado esquisito...
Ficaram a conversar, lá no alto, num tom intelígivel mas muito inflamados. Abraçaram-se.
Meu pai voltou à sua bica.
E explicou-me mais tarde, em casa, que o general esperava que o autorizassem a visitar um militar seu amigo que estava no Forte. Preso.
Em todos os Fevereiros comemora-se o absurdo do seu assassínio e eu lembro sempre aquela figura luminosa, que tinha um brilho próprio e inusitado. O brilho dos lideres. Dos heróis.
"Retrato do Herói"
Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.
Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.
Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.
Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.
Ary dos Santos (1937 -1984)