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02 MAI 2018
Entrevista - João "Espanhol": Amolador bastião da liberdade
Por Jornal Abarca
A Casa Espanhol, em Torres Novas, é uma das mais antigas lojas da região mas fechará portas em Maio. O proprietário, João ‘Espanhol’, tornou-se uma figura emblemática na cidade. Aos 88 anos, recorda o seu trajecto: as origens, a política, a loja quase centenária e a música.
 
De Espanha, bons ventos e bom casamento
A entrada da loja não deixa margem para dúvidas sobre as origens dos proprietários. Bem visíveis estão penduradas duas bandeiras, a de Portugal e a da Galiza. João Lopes nasceu em Torres Novas mas o pai, João Lopez, era natural da cidade galega de Ourense. “O meu pai veio fugido da ditadura à procura de um sítio mais escondido, então foi para Mira d’Aire, no meio da Serra, e ele amolava lá tesouras. Na Galiza, havia muitos amoladores, é uma tradição. Na povoação onde o meu pai nasceu até há uma estátua alusiva a isso”, vai contando João Espanhol, como é conhecido, por ser o dono da Casa Espanhol, com origens no país vizinho.
 
O pai tinha cerca de trinta anos quando se estabeleceu em Mira d’Aire, onde viria a conhecer a mulher. “Ele depois fugiu com a minha mãe. E o transporte que tinha era a roda de amolar. Entretanto, havia um espanhol aqui em Torres Novas, com uma doença grave, que acabaria por morreu”, explica. “E o meu pai ficou com a loja dele, ali debaixo do cinema velho”, junto à Praça do Peixe. João Espanhol teve uma irmã, Cecília, que faleceu, e tem um irmão, Manuel Joaquim.
 
A vida nem sempre foi fácil e quando tudo parecia finalmente assentar para a família, acontece um episódio marcante na vida do jovem João: “É um episódio engraçado, que não tem graça nenhuma. A minha mãe contraiu uma doença, e dois médicos diziam que era lepra, e um dizia que não. Achava que era uma doença que ela contraiu a sulfatar as vinhas”, o que não foi suficiente para amenizar os receios alheios. “Eu e a minha irmã fomos expulsos da escola. Os pais dos miúdos reuniram-se e souberam que a minha mãe tinha essa doença e podia contagiar os filhos. Na altura tinha sete anos e aquilo marcou-me muito”, lamenta. “Então fui para Mira d’Aire tirar a 3.ª classe, para casa dos meus avós”. Um episódio que o viria a definir enquanto homem: “Isto criou sempre em mim uma revolta muito grande, pela falta de humanidade”.
 
25 de Abril e 1º de Maio: a luta como forma de vida
Se a decoração da Casa Espanhol denuncia as origens do proprietário, também é bastante esclarecedora em relação às opções políticas de João Espanhol. Logo à entrada um cartaz exulta um “Que viva Abril!”, enquanto na parede há dois cartazes exibidos com orgulho: um com uma criança a segurar um cravo, outro com a imagem de Álvaro Cunhal, histórico líder do Partido Comunista Português.
 
As injustiças, como o caso em que foi expulso da escola, seriam marcantes para a luta pela liberdade. “O meu pai era contra o Franco e acolhia na loja outros fugitivos, dava-lhes sopa e deixava-os lá dormir. Tudo isso criou em mim uma revolta muito grande e talvez motivasse a vontade de entrar na política”, explica. “Comecei antes do 25 de Abril, no tempo do Humberto Delgado. Foi nesse período que me agarrei com unhas e dentes. Éramos todos clandestinos, e Torres Novas teve muitos presos políticos, sofreu muito com isso”, recorda. “Não cheguei a estar preso, mas já estava na lista para ser preso desde Julho de 1973. O que me livrou da prisão foi o 25 de Abril” [mostra despacho de detenção com o seu nome, o de Carlos Trincão Marques, Fernando Lopes Graça e de Canais Rocha].
 
Sobre o clima nessa época, não tem dúvidas: “Era terrível. As pessoas nem queriam dar o nome para as listas. Foi então que surgiu o MDP CDE [Movimento Democrático Português/ Comissão Democrática Eleitoral] e aí é que estive mais activo. Vinha para a rua, pintava o logotipo deles, criava agitação”, descreve.
 
Recorda que “no 1º de Maio não abria a loja! Mesmo antes do 25 de Abril. Uma vez, nos anos 60, fizemos um jantar ali na praça [5 de Outubro] e a PIDE andou aí, à paisana”, de forma a intimidar. “Na minha montra meti uma boneca preta e um branco com uma pombinha, que era símbolo da liberdade. Só por isso eles pegaram logo, vieram-me avisar que podia ser preso”. 
 
Contudo, nada disso o intimidou: “Nas eleições de 1969 já fui mais activo. Punha cartazes aqui na montra e tudo. Fui ameaçado pela PIDE, veio um ofício de Santarém, tive de preencher uns papéis. Mais tarde o chefe aqui de Torres Novas voltou porque havia um erro no papel, e ele dizia que não havia elementos para me castigar”. Foi aí que João Espanhol fez sobressair a sua veia de sobrevivente: “Saí pelas traseiras e num instante fui ao Dr. Trincão Marques, que também era da oposição, e ele disse-me para não assinar mais nada. Quando voltei, o chefe percebeu e ficou irritado porque ia ficar mal visto em Santarém. Ainda me disse: «Deixe lá que você e aquele Trincão Marques logo vêem o que acontece», conta entre risos. “Entretanto o Presidente da Câmara, Fernando Cunha, que era meu conhecido, responsabilizou-se em como eu não faria mais nada. Mas tive muitos amigos presos… uma série deles!”.
 
A própria esposa, Celina, hoje com 83 anos, chegou a viver momentos de aflição, como a própria relata: “Em 1969, no Congresso do MDP CDE, em Aveiro, houve uma homenagem ao Mário Sacramento, um grande democrata [natural de Ílhavo, faleceu em março de 1969]. Íamos em romaria à campa dele quando aparecem os polícias com cães a sair das travessas. Nós éramos os últimos da fila, estavam lá milhares de pessoas, eu ainda levei umas bastonadas”.
 
No entanto, tudo valeu a pena: “O 25 de Abril foi uma alegria, as ruas cheias… nem dormi durante uns dias! Na noite anterior estivemos numa reunião em Almeirim e estava lá um capitão. Já havia a sensação de que ia haver algo, falava-se nalgumas movimentações, mas não sabia que era naquela noite”. Considera que “estamos melhor hoje, mas após o 25 de Abril houve aquela luta entre o Mário Soares e o Álvaro Cunhal… mas o partido chegou a ter muita força, não foi mais à frente porque o Soares não quis, nós sabemos como ele era”. Sobre Álvaro Cunhal é peremptório: “Era um show quando ele aparecia! Faz cada vez mais falta gente como ele”.
 
Dizem que quando ouvem coisas como «o Salazar é que faz falta, não deixava chegar isto a este ponto» sentem “uma revolta muito grande, porque vem à memória o que passámos… havia muito medo, mas a gente ao mesmo tempo aventurava-se”, conta João. “Com aquela motoreta amarela [aponta para uma fotografia] ia distribuir o Avante! e panfletos durante a noite”, recorda com o entusiasmo de quem ajudou a fazer a liberdade.
 
A Casa Espanhol
João José Lopes nasceu 7 de Maio de 1929. “Quando o meu pai morreu eu tinha 11 anos, foi quando fiquei a tomar conta da loja, pouco ou nada sabia da profissão. Mas disse à minha mãe: «Amanhã vou abrir a loja», e no dia a seguir ao meu pai morrer abri eu a loja. Era pequena, arranjávamos chapéus-de-chuva, fazíamos amolações, peneiras e crivos, sobretudo. Nessa altura estragava mais do que amolava”, conta sorridente. “Havia um comandante da Escola Prática de Cavalaria que tinha uma navalha de barba e foi lá para a afiar. E eu toca de afiar, pumba, pumba, pumba, quanto mais afiava, mais aquilo ficava estreitinho, foi até gastar aquilo tudo [risos]. No outro dia veio o comandante à procura da navalha e eu, ala, escondi-me logo. A minha mãe depois é que desenrascou a situação, a chorar, a pedir desculpa ao senhor. Atendendo ao pedido da minha mãe, ele deixou passar: “Pronto minha senhora, deixe estar”.
 
Mas a vontade e a necessidade de sobreviver sempre levaram João Espanhol a abraçar qualquer luta. “Aprendi tudo por mim e mudámos para este sítio em 1971. Houve uma fase em que tínhamos bastante para trabalho, vendíamos muita coisa. Quando apareceram os supermercados, deram cabo de tudo”, diz entristecido. O comércio local, em Torres Novas como à imagem do país, foi desaparecendo. “Já não há lojas destas. Tenho clientes de Lisboa que mandam tesouras por pessoas conhecidas para eu amolar. É uma profissão ingrata, a malta nova já não quer aprender, e isto tem de se gostar”, como quem vaticina a morte lenta da profissão. “A roda que tinha aqui na loja vai ficar exposta no museu Carlos Reis”, informa com orgulho.
 
Prestes a completar 89 anos, a saúde não lhe permite continuar o negócio que alimenta há quase oito décadas. “Já não tenho condições para continuar. O pior é a saúde, já não tenho a mesma sensibilidade nas mãos e a cabeça também…”, diz cabisbaixo. “E financeiramente não compensa, temos mais despesas do que lucro”, completa a esposa. O encerramento da loja, previsto para o mês de Maio, não irá impedir um ritual já conhecido pelos torrejanos: “Este ano ainda vou pôr o cravo na montra no 1º de Maio”, diz com orgulho. Para o fim, a pergunta mais difícil: Está preparado para fechar a loja? “Esse é o meu maior desgosto. Eu nem durmo de noite… só adormeço lá para as 4h da manhã. Até ando mais doente por causa disso”. Fica um silêncio profundo na sala.
 
Uma vida a dar música
Outra das grandes paixões da vida de João Espanhol foi a música. “O Conjunto Níger surgiu a convite de um senhor que era bancário, juntamos mais três elementos e fizemos o Conjunto. Foram 50 anos a cantar!”, relembra. “Com os Níger corri o país de norte a sul, íamos para o Algarve, actuar no Casino durante 4 meses, ficava o meu irmão na loja”. Sobre esses tempos solta um claro: “Então não tenho saudades?”, mas “já acabou há quase 20 anos. O nosso azar foram as pessoas que faziam parte do Conjunto que não tinham amor aquilo, era só eu e outro. O resto estavam lá pelo dinheiro, mas a gente era por prazer. Ainda tentámos continuar mas não conseguimos. Foi por causa desses traidorzitos que acabámos”, atira.
 
O talento era reconhecido a nível nacional: “Em 1952, em Vila do Conde, ganhei o concurso “À Procura de Uma Estrela”. Fui representar o distrito de Santarém, e em 2º lugar ficou a Lídia Ribeiro, mãe da Teresa Guilherme, que representava Lisboa. Fui à final contra ela e ganhei”, diz envaidecido.
 
Desde jovem, João dedicava-se a fazer serenatas: “Os homens vinham à loja pedir para ir à janela da casa das mulheres fazer serenatas para elas mulheres, e eu lá ia” [risos].
 
Questionado se as serenatas eram apenas para clientes, recorda o seu namoro: “Ela vivia em casa de um tio e eu ia lá fazer serenatas. Mas o tio chegou-me a ameaçar!” [riem ambos]. A esposa continua e explica como João Espanhol era bom também na canção… do bandido: “Eu vinha da costura e nas horas de almoço, ele esperava por mim. Casámos em 1960 e no ano seguinte tivemos uma filha, a Dulce, que vive  na Suíça”. Celina desabafa: “ela vem amanhã visitar-nos”. E o rosto de ambos enche-se de felicidade.
 
 
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