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01 ABR 2018
Um homem do mar
Por Jornal Abarca

De cada vez que um navio encalha na foz do Tejo lembro-me dele.

Suave como todos os homens grandes, o sorriso que iluminava a vida da gente e a gente só encontra nos grandes homens do mar.

Joaquim Vicente era um homem do mar.

Nesse Outono de 1957, encalhou o Hildebrand frente ao Forte de S. João dos Oitavos e no regresso das compras semanais em Lisboa, para variar, voltávamos pelo Guincho e íamos ver o navio encalhado. Fatal. Um paquete que transportava passageiros e carga, malas, os automóveis coloridos e diferentes que ficaram alinhados nas rochas atraia a atenção dos viajantes a passeio até porque nessa época nem havia televisão....os divertimentos eram escassos e pouco interessantes. Salvaram-se os passageiros, a maior parte da carga.

Mas que tem isso que ver com o Joaquim Vicente?

Contava-se uma história bizarra.

A dada altura, na iminência de se perder o navio, houve um alerta para as capitanias encontrarem os melhores mergulhadores profissionais para avaliarem o estrago. Joaquim Vicente era o melhor. E foi a bordo do Hildebrand. Mas puseram-lhe uma condição: só passar pela casa das máquinas de olhos vendados. Lembro-me do seu sorriso largo, do volume pesado do seu corpo, e vejo-o recusar sem som uma proposta tão estranha. O Hildebrand partiu-se em dois e depois os mergulhadores que viviam dos navios naufragados em toda a costa, com relevo para a Cana da Nazaré, onde eram impensáveis os surfistas, os beligerantes vieram afundar muitos navios nas guerras passadas, desfizeram o resto.

Na sua casa aprendi o que era um escafandro, como se mergulhava com tal equipamento pesado e abstruso e quando mais tarde os astronautas os usaram sempre os confundi com o Joaquim Vicente e não me espantei com a vestimenta. Só que ele mergulhava no mar. A sua vida era o mar.

Uma tarde, uma tarde azul e tenebrosamente quente, chegou-me pelo telefone a notícia da sua morte. Já não era jovem, uma vida de muito trabalho....fui pensando pelo caminho do seu velório. 

A vida, que não se confunde com enredos de romance, dá voltas inesperadas.

Joaquim Vicente morreu no mar. Afogado.

Era um homem do mar.

Ícaro

A minha Dor, vesti-a de brocado, 
Fi-la cantar um choro em melopeia, 
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado, 
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a. 

Por longo tempo, assim fiquei prostrado, 
Moendo os joelhos sobre lodo e areia. 
E as multidões desceram do povoado, 
Que a minha dor cantava de sereia... 

Depois, ruflaram alto asas de agoiro! 
Um silêncio gelou em derredor... 
E eu levantei a face, a tremer todo: 

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro! 
E, misérrima e nua, a minha Dor 
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo. 

José Régio 1901-1969 

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