De cada vez que um navio encalha na foz do Tejo lembro-me dele.
Suave como todos os homens grandes, o sorriso que iluminava a vida da gente e a gente só encontra nos grandes homens do mar.
Joaquim Vicente era um homem do mar.
Nesse Outono de 1957, encalhou o Hildebrand frente ao Forte de S. João dos Oitavos e no regresso das compras semanais em Lisboa, para variar, voltávamos pelo Guincho e íamos ver o navio encalhado. Fatal. Um paquete que transportava passageiros e carga, malas, os automóveis coloridos e diferentes que ficaram alinhados nas rochas atraia a atenção dos viajantes a passeio até porque nessa época nem havia televisão....os divertimentos eram escassos e pouco interessantes. Salvaram-se os passageiros, a maior parte da carga.
Mas que tem isso que ver com o Joaquim Vicente?
Contava-se uma história bizarra.
A dada altura, na iminência de se perder o navio, houve um alerta para as capitanias encontrarem os melhores mergulhadores profissionais para avaliarem o estrago. Joaquim Vicente era o melhor. E foi a bordo do Hildebrand. Mas puseram-lhe uma condição: só passar pela casa das máquinas de olhos vendados. Lembro-me do seu sorriso largo, do volume pesado do seu corpo, e vejo-o recusar sem som uma proposta tão estranha. O Hildebrand partiu-se em dois e depois os mergulhadores que viviam dos navios naufragados em toda a costa, com relevo para a Cana da Nazaré, onde eram impensáveis os surfistas, os beligerantes vieram afundar muitos navios nas guerras passadas, desfizeram o resto.
Na sua casa aprendi o que era um escafandro, como se mergulhava com tal equipamento pesado e abstruso e quando mais tarde os astronautas os usaram sempre os confundi com o Joaquim Vicente e não me espantei com a vestimenta. Só que ele mergulhava no mar. A sua vida era o mar.
Uma tarde, uma tarde azul e tenebrosamente quente, chegou-me pelo telefone a notícia da sua morte. Já não era jovem, uma vida de muito trabalho....fui pensando pelo caminho do seu velório.
A vida, que não se confunde com enredos de romance, dá voltas inesperadas.
Joaquim Vicente morreu no mar. Afogado.
Era um homem do mar.
Ícaro
A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopeia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.
Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha dor cantava de sereia...
Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor...
E eu levantei a face, a tremer todo:
Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo.
José Régio 1901-1969