Home »
01 MAI 2018
A vida dos dicionários
Por Jornal Abarca

Na edição dominical do El País de 25 de Fevereiro li um artigo que titula esta crónica. O articulista sublinha a importância dos dicionários dizendo: “são tesouros de uma língua e também centenários. Entrar neles é também descer às profundidades infinitas onde habitam palavras naufragadas.”

Das virtudes e qualidades dos dicionários mesmo quando integram no seu bojo aleijões de variados géneros e, feias cicatrizes provenientes de descaradas imitações, os latifundiários de vocábulos contêm validades de palavras suspeitas de o serem até ao momento de serem lidas. Por algumas vezes troquei interrogações e exclamações referentes a estas arcas do tesouro linguístico com o saudoso Dr. Eurico Heitor Consciência, aludindo aos de consulta diária, aos especializados neste ou naquele assunto, aos dos infernos (que também existem), aos de excentricidades, possuo um dedicado à cozinha dos antropófagos, enfim a todos sem esquecer os seus auxiliares, os prontuários e vocabulários. Nessas conversas, normalmente, durante refeições dignas de sibaritas, os dicionários saíam das nossas bocas carinhosamente tratados pelo patronímico ou apelido do autor – o Barbosa, o Bluteau, o Buarque, o Cândido, o Fonseca, o Houassis, o Inocêncio, o Morais, o Morais Novo, o Pedro Machado, o Roquette, o Torrinha – e por aí adiante até chegarmos às raridades que cada um guardava ou guarda, num vaidoso (eu pelo menos) ocultar receoso de desvendar o alfarrabista ou sebo * vendedor.

Sim, não deixávamos de comentar os longos trabalhos de autores e Academias na sua organização, as teimosias dos autores, concluindo serem imprescindíveis no nosso viver. Sem qualquer surpresa para mim, em determinada altura um blogue ressabiado especialista em destilar baba invejosa procurou escarnecer do facto de eu trabalhar com todos os dicionários acima referidos como se fosse vaidade espúria. Nada disse ao Sr. Dr. Consciência, no entanto, presumo saber de onde partiu a notícia da nossa incomensurável pelos dicionários.

Não raras vezes vou a procura de uma palavra “naufragada”, encontro-a, só que no decurso da indagação tropeço noutras num crescendo a fazer estragos no tempo consagrado à tarefa. É que se chama, ir buscar lã e sair tosquiado dada a imensidão do saber escondido nas suas páginas, milhares e milhares de páginas compõem muitos deles e nem sempre correspondem aos nossos desejos. E a caça a dicionários? Trabalhosa e custosa a salientar o chavão – quem tem livros, não tem libras – nem espaço na casa onde vive.

Há anos numa deambulação no armazém de livros e outros suportes documentais do arguto alfarrabista Senhor Ribeirinho, estabelecido na vizinha aldeia de Ortiga (Mação) descobri o Dicionário da Imprensa Nacional editado em 1884, há muito tempo o procurava. Exultante, agarrei nos dois volumes e ao modo de comprador num labiríntico mercado oriental de Istambul ou Teerão regateei, regateei, o Senhor Ribeirinho não se comoveu, paguei o preço pedido.

Presentemente as minhas prioridades intelectuais centram-se na História da Alimentação, transformações e usanças no modelo alimentar do Homem. Sem esperanças de perceber as especificidades alimentares dos nossos ancestrais de outros continentes procuro entender as matricialidades obrigando-me a incessante pesquisa nos dicionários dedicados à nona arte – a gastronomia – de igual forma à cadência progressiva das gentes na diferenciação do que era (é) comestível e o venenoso, isto sem esquecer as particularidades de cada povo procurando cumprir os postulados de Claude Lévi-Strauss, o Mestre emérito, Sábios dos sábios, encontrando nos dicionários lenitivo benéfico para as insuficiências que padeço.

Pode ser abusivo o meu conselho aos leitores deste jornal, todavia rasgo a teia da separação cronista/leitor e digo-lhes ser imprescindível não se separarem dos dicionários só porque há outros na Internet, os vossos estão sempre ao dispor, não solicitam pagamento adiantado, só falam quando lhes pedem e, felizmente livram-nos de indecisões, omissões e erros grosseiros ou elegantes.

O historiador e temível polemista Alfredo Pimenta ficou conhecido por ser o homem dos dicionários, trabalhava com dezenas deles concedendo-lhe um enorme arsenal vocabular que ele utilizava destramente na defesa dos seus pontos de vista quase sempre em sintonia com o pensamento de Salazar.

Pode parecer estranho o teor desta crónica pois salta a linha da temática habitual, no entanto, é um engano pensar-se de grosseiro desvio, os «consumidores» de mantimentos vocabulares e defensores da língua de um qualquer povo apreciam tais manjares (o branco tem dezenas de versões) quanto as delicadezas gastronómicas só ao alcance de sibaritas conhecedores e cujo palato consegue destrinçar o ínfimo mas excelso gosto da pitada de uma especiaria na marinada aberta de esquisita carne, que só se torna esquisita em resultado dessa mesma pitada.

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
 73%     Sim
 27%     Não
( 367 respostas )
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design