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01 JUN 2018
Ofícios que se esbatem
Por Jornal Abarca

Com a desertificação do país, há inúmeros ofícios que se escoam pelos fios do tempo, desaparecendo e apenas perdurando nas nossas memórias individuais e coletivas.

Na minha aldeia, a desertificação, à superfície, não se nota excessivamente, sendo uma terra grande, ainda tem muitos habitantes, apesar de ser uma sombra do passado e das perdas serem muitas. As pessoas são insubstituíveis, claro, e a sua presença não tem preço. Contudo, se atentarmos, se passearmos ainda que brevemente e num curto percurso, apercebemo-nos que, em profundidade, as mudanças são marcantes. Há casas outrora habitadas, limpas, caiadas, enfeitadas, floridas…que, agora, votadas ao abandono, parecem carcaças descarnadas. Já não têm alma, os seus donos partiram irremediavelmente. Na sua maioria, para sempre. Outro aspeto que ressalta à vista e macula a comunidade em relação à memória do passado é o desaparecimento de ofícios inerentes às pessoas que partiram. Posso dividi-los a priori em dois grupos: os pertencentes à aldeia e os que por ela passavam.

O merceeiro, o senhor Zé Parra, que acumulava as funções de armazenista de produtos para alimentação de animais, taberneiro e gasolineiro, que pautou a sua vida e a da família pelas necessidades dos consumidores, vivendo por cima do estabelecimento para levar a eficácia e comodidade ao máximo, foi, talvez, uma das figuras mais marcantes e emblemáticas da aldeia que percorreu toda a minha infância e a dos meus coetâneos. Dele recordo a figura, a generosidade e até algumas frases que ainda hoje entre os membros da minha família recordamos com saudade e um sorriso nos lábios, como a célebre: “Eh! Eh! Gasolina fiada à hora de almoço!” – frase irónica que foi originada por um ou outro duplo imprevidente que além de não acautelar o depósito da moto cheio, em horário de abertura do estabelecimento, se esquecia igualmente de trazer o pagamento devido e pedia para ficar este para depois, registando-se no livro dos assentos. Esta expressão já lhe saía, por extensão e generalização, ironicamente, sempre que uma situação não lhe agradava de todo.

Que dizer igualmente da padeira, ofício desempenhado, ao longo dos tempos, por pessoas diferentes, que fazia a venda diária do pão, da broa e dos bolos e que, em tempos recuados, chegou a ser desempenhado por várias pessoas numa panificadora central que produzia e vendia os seus produtos. Hoje, a aldeia tem ainda uma outra panificadora em funcionamento que além de produzir e vender na terra, abastece a padaria-pastelaria principal, no Entroncamento. Aqui, felizmente, não se trata de desaparecimento do ofício, foi reduzido em número e adaptado à atualidade, mas sobrevive e é, de resto, referência de qualidade no concelho vizinho.

O sineiro, pessoa que tem por função tocar os sinos, artista da comunicação, pois cada toque tem seu significado. Por exemplo, são diferentes os toques que chamam para a missa à medida que se aproxima a hora do seu início, há toques diferentes para eventos diferentes (casamentos, batizados…), os toques de finados (anunciam que alguém da aldeia faleceu) são igualmente distintos se se trata de pessoa do género feminino ou masculino… Função acrescida de responsabilidade numa aldeia rural em que serve, sendo tocado a repique, da torre sineira, lugar privilegiado para a expansão do som-aviso, com o seu rebate, para anunciar perigo ou desgraça, de incêndios ou outros, alertando a população que era hábito prontamente acorrer para auxiliar em caso de necessidade. Hoje em dia, não havendo já a mestria de antigamente, alguns toques ainda se distinguem, outros já se extinguiram das nossas sensações auditivas.

O desaparecido sapateiro que numa senda de economia remendava, cosia, colocava as meias-solas, remendos que contribuíam para a economia familiar.

Os oleiros que, na minha infância, eram ainda três, tendo sido anteriormente muitos mais, pois Árgea é terra argilosa, e que faziam nascer da terra objetos, operavam a magia do surgimento moldando barro que os próprios iam escavar, trabalhar, moldar, cozer e, por fim, vender na própria olaria e nos mercados semanais próximos. Seguramente que os meus coevos se recordam dos vasos, alguidares e tachos a secar ao sol e das miniaturas destes, sobretudo presenteadas às meninas, pois a educação feminina por aí passava. Atualmente nem um oleiro se conta. Esta arte perdeu-se…

Qual almocreve da Idade Média, recordo-me que passava por aqui o característico amolador que se fazia anunciar pelo toque do realejo, também designado por gaita de beiços, ao qual as senhoras prontamente acorriam, deslocando-se de carroça e vinha afiar facas e tesouras e, num tempo em que a reutilização se fazia mais por necessidade do que por ecologia, reparar chapéus de chuva desavindos com algum temporal que teriam sofrido o K.O. suficiente para lesão tratável por este curandeiro.

Outro destes almocreves era um vendedor ambulante que maioritariamente trazia panos a retalho. Na época em que o prêt-à-porter já existia, mas ainda não era o detentor do quase monopólio atual, muitas peças de roupa eram feitas à mão, em casa ou na costureira, e, por isso, a clientela era larga para estes produtos, e também para os atoalhados e outras roupas de casa.

Outro era o tosquiador sazonal que na primavera tratava da tosquia de ovelhas e de algum cão mais incauto e melhor provido de pelo, sempre útil em terra de pastores e rebanhos.

Por último, o cantoneiro figura útil que caiu em desuso e que com o atual contexto de incêndios deve ser repensada.

Estes não eram de cá, mas por cá passavam, contribuindo com as suas presenças, com os seus sons característicos e ações para complementar os serviços existentes e preencher também a aldeia.

A aldeia era vida. Com a sua teia de contactos onde todos se conheciam e muitos se entreajudavam.

Passa o tempo inexorável que não perdoa. Não sou contra o progresso e a mudança, mas há mudanças para pior, há nostalgia do passado e há a mágoa da perda do que, em tempos, foi. Ou agora, presentemente, é, mas já não é a mesma coisa.

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