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01 JUL 2018
A Ruína
Por Jornal Abarca

De repente, no facebook, apareceu a ruína. Apenas como uma ruína. Um resto duma casa velha.

De repente, diante dos meus olhos, o que sobejou do mundo medievo onde nasci.

Eu nasci naquela casa. Eu, a minha mãe, os meus tios, a minha prima. Quando aquela casa existia e fervilhava de vida.

Não morrerá nunca aquela casa, embora a considerem uma ruína, um resto. Não morrerá porque vive na minha lembrança. Meu avô, de fato completo, nas manhãs cinzentas, a ler “O Primeiro de Janeiro” pelos óculos de aros d’ouro, a Tia a aquecer o ferro de frizar para lhe retorcer os bigodes pontudos, o criado atrás, como uma estátua.....− ó Carlos vira o quadro! E o criado a obedecer em silêncio. Virava o quadro, que dum lado tinha uma foto de Estaline e do outro um Cristo, consoante a pessoa que se aproximava e o avô avistara pela janela sobre a estrada.

E o ruído constante do rio no açude.

Para sempre na minha memória mais remota o cantar das mós, o respigar do rio...

Alguns pintores por lá estiveram temporadas a pintar aquela paisagem de excelência.

O tempo quebrou a casa, no moinho nunca mais soou o tilitar da mó alveira em final de tarefa, nem os fantasmas que arreliavam o avô com brincadeiras tolas resistiram... nada mais há. Mas é ali que eu continuo a jogar à bola, a andar velozmente de triciclo, a ouvir as histórias heróicas que o Carlos nos contava do D. Caio e de D. Afonso Henriques como se fossem seus amigos íntimos.

O rio a saltar o açude... as mós a cantarem baixinho...

Minha mãe, minha mãe!

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa, 
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti. 
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares 
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares, 
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci. 
Era a hora em que já sobre o feno das eiras 
Dormia quieto e manso o impávido lebréu. 
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras, 
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras, 
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!... 
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço, 
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço, 
Eu balbuciava a minha infantil oração, 
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento 
Que mandasse um alívio a cada sofrimento, 
Que mandasse uma estrela a cada escuridão. 
Por todos eu orava e por todos pedia. 
Pelos mortos no horror da terra negra e fria, 
Por todas as paixões e por todas as mágoas... 
Pelos míseros que entre os uivos das procelas 
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas 
Errantes através do turbilhão das águas. 
O meu coração puro, imaculado e santo 
Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai, 
Para toda a nudez um pano do seu manto, 
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto 
E para todo o crime a seu perdão de Pai!... 

Guerra Junqueiro 1850 -1923 

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