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02 AGO 2018
Entrevista - Bruno Neto: "O melhor de tudo são as pessoas".
Por Jornal Abarca
Nasceu há 40 anos no Tramagal, percorre o mundo em acções humanitárias e recusa-se a ser politicamente correcto. A terminar uma missão na Mongólia, Bruno Neto deixa um relato emocionante da sua vida.
 
Como surgiu a decisão de te dedicares às acções humanitárias?
Em 1998 fui um dos fundadores da CISTUS e, com a internacionalização da CISTUS, em 2003 fui à Jordânia. Em 2004 terminei a licenciatura em animação sociocultural, fiz o estágio em Chelas, e o trabalho que apareciam eram coisinhas, tudo redutor para aquilo que eu queria fazer. Na altura surge o intercâmbio na Jordânia e a organização local queria um voluntário durante o ano e foi isso que me lançou. Quando eu vou em Janeiro de 2004, todos me chamaram maluco, mas eu estava confiante que a coisa não ia ser má. Iniciei um projecto chamado “Follow The Women”, em que 250 mulheres de 48 países fizerem um percurso de bicicleta do Líbano à Jordânia e fui convidado para coordenar o backoffice do evento. Ou seja, em Portugal oferecem-me uns estágios, ninguém quer saber de mim, e na Jordânia dizem-me: “Queres coordenar este projecto?”. As pessoas reconheceram as minhas potencialidades e confiavam em mim. Os que me chamaram maluco foram os primeiros a dizer que sempre confiaram em mim.
 
Como é que a tua família reagiu quando foste para a Jordânia?
Foi… eles… não foi a melhor reacção. Eles queriam que eu ficasse pela zona. O meu pai perguntou-me “Estás a falar a sério?” e a minha mãe disse “Espera lá… tu vais para a Jordânia ou à Jordânia?”… foi um choque! Mas depois apoiaram-me. E eu vi-me numa situação em que não conseguia arranjar um emprego de jeito e achei que tinha que ir dar uma volta…
 
Em que países já viveste?
Já vivi em sete países de quatro continentes: na Jordânia, nas Honduras, em Angola, lá no interior no meio do nada, no Congo, na Serra Leoa durante o ébola, na Ilha de Moçambique, onde fazia pão e ia pescar, e agora estou na Mongólia. Os anos no Congo e na Serra Leoa bateram-me forte e fui respirar para a Ilha de Moçambique. Houve uma altura na Serra Leoa em que percebi que estava no limite.
 
Isso teve a ver com excesso de trabalho ou com vivenciares situações limite?
[silêncio]… Ricardo, morreram-me pessoas nas mãos em Angola… mulheres a ter um parto, bebés acabados de nascer. Angola foi muito complicado… trabalhei com parteiros tradicionais onde ninguém quer saber do que lá se passa. Na Serra Leoa morreram-me colegas de trabalho, filhos de colegas… no Congo, uma desgraça! Mas uma desgraça completa!... [silêncio] Humanamente foi o sítio mais triste onde estive. O sofrimento das pessoas do Congo é uma coisa inexplicável… aquelas pessoas, que têm um coração – eu nem digo de ouro, que o ouro é uma coisa material! –, que têm uma humanidade brutal… pessoas que os filhos morrem, que crianças são raptadas, mulheres são violadas… 
 
Nesses momentos nunca pensaste em desistir?
Na Mongólia estive com temperaturas de menos 44 graus e muito sozinho. E não sei se é por estar a fazer 40 anos, se calhar é a crise dos 40 [risos]… mas estou cansado… estou cansado mentalmente. Já tentei ser normal e voltar a Portugal duas vezes, uma delas a coordenar o programa Pobreza Zero, mas fui-me embora. 
 
E porque é que nunca ficaste?
Uma vez fui selecionado num concurso para a CM Abrantes e toda a gente ficou muito feliz, a pensar que eu já tinha ido fazer as minhas coisas e que agora voltava. Um dia cheguei ao Tramagal e a minha mãe estava a dar um jantar com a família toda quando lhes disse que afinal ia para as Honduras [risos]. Começaram a chorar…
 
Quando te apareceu a Mongólia achaste um bom projecto ou foi o que te surgiu?
Com o meu currículo tenho alguma facilidade em arranjar trabalho. Em Portugal não, atenção! Mas recusei vários projectos quando vim para aqui. Agora, preocupo-me muito com aquilo que vou deixar nos sítios onde trabalho. Não sou politicamente correcto… uma vez numa conferência na Fundação Champalimaud apelidei Passos Coelho de “cidadão de segunda” à frente de Cavaco, Leonor Beleza, dos secretários de Estado... já perdi muito com isso mas não me calo. E antes de aceitar uma proposta tento perceber como é que a organização trabalha, o impacto daquilo que faz, como é aplicado o dinheiro. Já me despedi de vários empregos, como agora na Mongólia [terminou a sua missão no final de Julho] por não concordar com as decisões políticas que a minha sede, em Praga, está a tomar. O problema de muitos europeus e americanos é que não consideram as pessoas destes países como seus iguais.
 
Pessoas com as mesmas capacidades...
Mais! Neste caso muito mais… os meus colegas mongóis são dos mais capacitados com que trabalhei. Mesmo assim a arrogância dos checos… sempre lutei pela dignidade das pessoas, por justiça, jamais aceitarei estas situações.
 
Sais da Mongólia, tens planos para o futuro?
Agora vou aproveitar para viajar umas semanas aqui na região e depois vou até Portugal mas como já tenho alguma experiência em não ser normal pode acontecer fartar-me do que chamo “problemas dos brancos” que é estar uma hora sem internet, coisas que, com todo o respeito… eu vejo diariamente coisas como pessoas caminharem quilómetros a pé para ir a um centro de saúde. Tive de aprender que os problemas são muito relativos, e quando vou a Portugal tenho de ter alguma paciência.
 
Alguma vez quiseste mudar o mundo?
Todos os dias... e ainda acredito nisso. Mudar os paradigmas é difícil, mas o mundo mudase todos os dias com pequenas coisas que contribuem para algo maior. Eu acredito nisto!
 
E isso passa pelo voluntariado?
Há muita gente que me envia mensagens a dizer que querem ser voluntários em África nas férias. Eu pergunto: “E o que é que já fizeste em Portugal?”. Porque querem ir tirar umas selfies com os pretinhos a África… e ficam chateadas comigo. Ir para África três semanas não tem jeito nenhum. As pessoas esquecem-se que o mundo muda-se em todo o lado, e Portugal continua a precisar de ser melhorado! Há duas semanas escrevi para a Associação Nacional de Bombeiros porque queria ajudar, fazer coisas que valem a pena. Disse-lhes que não queria publicidade disto, nem dinheiro. Só queria muito ajudar. Achas que alguém me respondeu?
 
Qual é o teu trabalho no dia a dia?
Estou na Mongólia há 9 meses como chefe de missão da Caritas da República Checa. Tenho um projecto de formação em agricultura biológica, e aqui é muito complicado porque só temos quatro meses sem neve. Estamos a formar 400 e tal agricultores, é um projecto interessante em termos de resultados práticos. E há outro projecto na reciclagem de entulho. As construções são antigas e tóxicas, o que é destruído é colocado a céu aberto e contamina os sistemas freáticos, as terras… estamos a trabalhar com várias associações para criar uma mini-revolução em termos de práticas, deixar trabalho feito, para que me possa ir embora e as coisas continuem a funcionar de forma sustentável.
 
É um pouco a lógica de “ensina-os a pescar, não lhes dês o peixe”?
Nos países católicos temos muito a lógica da caridade, e a caridade não é sustentável. Gostamos de dar coisas para África… e depois fazem aquilo do apadrinhamento de crianças, que é uma coisa horrível! Trabalhei numa comunidade, foi lá uma associação tirar fotografias aos meninos e colocam no site para as pessoas escolherem qual querem apadrinhar, e depois mandam coisas para a criança. De repente há uns com umas coisas, e há outros que continuam sem ter nada. Isto cria problemas muito graves nas comunidades! O dinheiro que se gasta nestes presentes dava para arranjar um poço para as crianças não irem buscar água a pé, coisas para a comunidade porque os problemas não são individuais, são da comunidade! Estas associações aproveitam-se disso, isto é profundamente triste.
 
Quais são as melhores coisas que guardas?
As relações humanas… as pessoas que conheci, que me tornaram mais humilde. E o mais incrível de tudo: são pessoas que não foram à escola e são aquelas que mais me ensinaram… 
 
É a falta dessa humildade que te chateava em Portugal?
E continua a chatear… havia uma campanha em que aparecia a Judite de Sousa com uma frase do estilo: “se não fosse a escola, agora estava numa tabacaria”. Isto é nojento! Devemos valorizar a escola mas nunca se deve, e isto aprendi com os meus pais, desconsiderar alguém que trabalha, no fundo, para alimentar a máquina. São pessoas! As pessoas desconsideram-se em Portugal, aquela conversa de “tens de ser doutor para ser alguém”, isso não é verdade…
 
E o que é que te marcou mais pela negativa?
A ganância… causar guerras por dinheiro. Ver crianças na guerra, mutiladas, tudo para extraírem minérios da forma mais barata… no Congo vivi numa cidade que se chama Goma, está rodeada por 43 guerrilhas, e as armas que eles usam são novas! Vinham da Bélgica, de Israel, França, EUA… Espanha é o maior produtor de minas antipessoais e é o maior produtor de próteses. Isto é pornográfico! A nossa roupa… no Bangladesh e nas Honduras há crianças que trabalham à noite para fazer t-shirts! Vemos uma t-shirt a 1 euro e não temos noção de como é que aquilo só custa 1 euro… vivemos numa bolha sem noção de que o mundo inteiro trabalha para nós.
 
Vês-te a fazer política em Portugal?
Sim… uma vez no programa “Portugueses pelo mundo”, disse que daqui a uns anos ia ser presidente da Junta do Tramagal. Disse isso a brincar! O que isso gerou… bocas de que estava a preparar a minha candidatura, foram falar com os meus pais… e não quero cargo nenhum neste momento! Como a situação política está organizada não tenho interesse…
 
És contra o sistema partidário?
Acho que está obsoleto, há demasiados vícios. Sou favorável a uma democracia participativa, mais do que representativa. Em Portugal temos agora os orçamentos participativos… isso é uma brincadeira! É bom, mas são migalhas, podia fazer-se uma coisa a sério! Gostava de mais tarde trabalhar em termos políticos, mas não partidários… estou fora! Ainda que o Cavaco me tenha convidado para ser um dos mandatários da juventude numa das presidenciais, e eu disse que não... mas foi tarde demais!
 
Se calhar nem votarias nele…
Se calhar?... Jamais! Mas é que jamais! Prefiro votar branco do que votar em gente de que não gosto. E eu que não posso com o Cavaco nem com a Manuela Ferreira Leite, sou galardoado por ele e o despacho vem assinado por ela! [risos].
 
Equacionaste recusar a condecoração [Cavaleiro da Ordem da Liberdade]?
Quando me ligaram não dei a resposta logo… o meu pensamento imediato foi “não”, mas falei com alguns amigos que considero bons conselheiros e a questão ficou como sendo uma condecoração do Estado português pelo reconhecimento do meu trabalho, mais do que quem me a dá.
 
E o que significam para ti essa condecoração e, também, as da CM Abrantes e da JF Tramagal?
Depois de receber a condecoração do Cavaco havia velhotas no Tramagal que me tratavam por “Dr. Bruno” [risos]… mas eu não dou consultas! Até fico… ainda por cima pessoas que andaram comigo ao colo! Para mim essas condecorações são bonitas mas não alteram rigorosamente nada!
 
Aconselharias aos jovens saírem de Portugal e abraçar o voluntariado?
Com toda a naturalidade aconselho. É bom conhecer outras realidades, outros mundos e aprender, aprender e aprender de forma a tornarmos o nosso mundo maior. É muito importante sairmos da nossa zona de conforto e muitas das vezes é longe que começaremos a dar valor a coisas do nosso mundo. Foi na Jordânia e Palestina que me apaixonei pelo nosso azeite porque eles eram totais apaixonados, algo que para mim era algo banal, e depois dessa experiência fiquei aficionado e sempre que posso vou apanhar a azeitona. 
 
Apesar de estares longe continuas com uma forte ligação ao Tramagal?
Claro. Tudo o que tenha a ver com política, discussões sobre a terra, estou sempre presente. Em 2011, houve um período em que deixei de trabalhar e fui para o Tramagal organizar um protesto contra o fecho dos CTT.
 
Ainda és o Bruno do Tramagal ou sentes-te mais o Bruno do mundo?
Por mais que viaje, todos os meus bilhetes têm sempre uma volta. Continuarei a ser o filho do Zé Mocas e da Saltina, o neto do sacristão ou um dos “cachopos da praça”, que era o nome que muita da população de Tramagal dava aos elementos iniciais da CISTUS. Quem me conhece sabe que, por mais que viaje, por mais que possa ganhar reconhecimento aqui ou ali, continuo a ser sempre o mesmo. Com a mesma simplicidade, a mesma humildade e a mesma irreverência.
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