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01 AGO 2018
UMA OCULTA E TREMENDA INJUSTIÇA DIVINA
Por Jornal Abarca

Do%u011Fubeazit,Turquia, fronteira com a Arménia e o Irão, 2006.

Tinha que aqui vir. Ao fim de quase 4 anos, para lá do vai-e-vem frenético Istambul-Ancara-Istambul, aprendi muito aqui sobre Portugal e ser português- explicarei um dia, se tanto me sugerirem. Comecemos por alguns locais da Turquia onde cheguei, escarafunchei, anotei e me marcaram de vez, incluindo o seu significado - Bursa (colina de mesquitas verde-esmeralda); Sinop (barco valente que enfrenta ondas - terra de Diógenes);Assos (terra de Aristóteles); Éfeso (a Roma do Oriente, onde morreu S.João); Truva -Troya (soldado de infantaria); Pamukkale (Castelo de Algodão); Izmir (pôr-de-sol laranja); Antalya (merecido descanso ao fim do dia) e o que mais tanto há e que aqui não cabe. Um mundo de togas, túnicas, arquétipos, filosofias, lanças, quadrigas, deuses e deusas, conquistas e reconquistas, um milenar corredor da Europa Central, Macedónia, Grécia e Roma até às costas do Atlas e ao invés, um turbilhão da Mongólia, Índia e Azerbaijão até às portas de Viena, sem esquecer os pólos da civilização Hitita, Caldaica, Assíria. Enfim, histórias da História. Agora, que é quase hora de pular no mapa (Albânia e Ucrânia, ao que me dizem), medito com os botões que se “sou obrigado a voar de novo, como andorinha acorrentada, ao menos que continue com a alma saudosa, passo a passo de lenta, mas livre e sábia tartaruga”. Um ditado bem turco.

Por isso, aqui estou. Aceito a hospitalidade de Bilge (Bilge=o Sábio) e Adrita (Adrita=a Charmosa), um casal de velhos camponeses que habita os imponentes beirais deste grande Ararat, vai para décadas. Sim, Ararat, o tal, o da Bíblia, o do dilúvio. Foi ali em cima, que todos nós (cristãos, judeus e islâmicos) veneramos o bendito encalhe da Arca de Noé. Aliás de “monte”, só o nome – Ararat é o conjunto de duas montanhas, o mais alto nesta parte do mundo, 5.000 e tal metros de altitude, céu sempre azul contra o manto imaculado de neves meio eternas, enrolar caprichoso de fumarola de nuvem que roça o cume, uma portentosa fortaleza natural.

Depois da çorba (sopa) de legumes e da fatia de pão com alho e cebola (como invejo quem vive do que cultiva…), viemos para a soleira da porta fumar os nossos cachimbos enquanto Adrita prepara lá dentro o çay. Uma noite ainda jovem, ficámos calados sob o manto das estrelas, quatro (e agora seis, quando Adrita chega com as canecas) olhos fixos na crista rochosa congelada do gigante. Ainda que paupérrimo como o tetravô de Job, o meu turco falado (escrito ainda é pior), consegue esbanjar admiração: — Magnífico! Deus seja louvado por ter criado esta montanha e nos deixar admirá-la!

Mal o disse, percebi a falha - como é possível continuar a ser tão ingénuo ao ponto de me entusiasmar? Bilge olha-me irónico: — Evet, evet (sim, sim) ... Alá é grande. Mas alguma coisa de injusto ficou por explicar...

— Injusto? Ficou por explicar— Evet, ficou…, sem dúvida.

Bilge ondeou a caneca de çay fumegante com calma, a olhar-me fixamente como se eu fosse recruta das cavalariças do sultão:

- Diga lá, Alá não é Perfeito?

Sorrio interiormente, era a vez dele ser ingénuo:  — Claro que sim, Deus é Deus.

Belgin levanta-se, coça a barba ralada, bate com o cachimbo na sola do tamanco e monologa, de costas para mim:

- Bom, e Alá embora decidisse limpar o mundo do pecado, não quis deixar de nos dar outra hipótese, poupar alguns homens bons e bem como um casal de animais de todas as espécies que havia, não é?

Evet, assim consta.

—...e se os animais continuam fortes e simples, não causam nem sofrem guerras, não sabem o que é pecado, então a culpa do Dilúvio não foi deles.

Não, não será…

A Belgin não faltava perspicácia. Adrita, olhava-o enlevada, mãos no regaço submisso, como mandam as boas regras de quem é destinada a amar e eventualmente, ser amada.

— Ou seja os animais é que foram e são sábios. A todos foi dada a mesma oportunidade e estão perfeitos, nada de injustiças…

Concordo...

— E nisso vão bem mais longe do que nós. Tentámos e tentamos, mas até agora continuamos em guerras, ódios, uns cada vez mais ricos, outros cada vez mais pobres, não conseguimos ser iguais

Admiro o seu bom senso, Belgin bey. Mas onde quer chegar?

— Ora, Alexandre bey, a verdade é que nem a todos os animais foi feita justiça, nem a todos foi-lhes garantida igualdade de condições. No Dilúvio houve animais a quem Alá deu a sorte grande, enquanto outros eram apertados, enjaulados, uns em cima dos outros, encastelados, quase meio esmagados, fora o enjoar com as montanhas de água que caíam do céu… E isso durante dias, noites e dias. Mas há pior, Alexandre bey.

- Pior? 

- É só quando saíram é que finalmente puderam procriar! Até lá nenhum podia satisfazer a fêmea nem esta agradar ao macho… Tudo fechado, congelado, negado!

E Belgin, rematou meio vitorioso:

- Aos outros, aos grandes protegidos de Alá foi tudo uma maravilha! É injusto!!!  

— Desculpe, Belgin bay, não percebo. Que animais são esses, tão beneficiados?

— Ora, Alexandre bey, os PEIXES! os PEIXES, a PEIXARIA toda!!! Todos satisfeitos, naquela de quanto mais água, melhor, uma maravilha de vida, isto é que é nadar, queremos lá saber da chuva, venham é mais pingos!!! Diga-me lá, Alexandre bey: consta ter havido alguma pescada, polvo, caranguejo, raia, enguia, arenque, moreia, truta, alforreca, salmão, linguado, amêijoa, corvina, tubarão, lagosta, carapau, caviar a entrar e viver na Arca? E mesmo os que dão leite, os golfinhos, as baleias, os cachalotes - não ficou tudo cá fora, em grande festa?

[psst, Caros Leitores – embasbaquei, uma ratoeira tão óbvia como sem saída. Pelas alminhas, contem esta Injustiça Divina e peçam resposta aos vossos párocos, pastores, bispos, imãs, rabis, veterinários, deputados do PAN, PS, CDS e PSD (sabe-se que o PCP e BE não descem a estas ridicularias). Mas se os leitores palmilham zelosamente os Evangelismos, pf quais as referências resgatadoras – Tibúrcio 122:10, Zebedeu 422:31 ou Zacarias 7:238 ? E olhem que nem santos de casa fazem aqui milagres – Santo António fez até um grande Sermão aos Peixes, numa very nice, a CGTP fez bom trabalho de recruta, cartazes e palavras de ordem, apareceu veio tudo o que eram escamas e barbatanas, transmissão na TV em direto, bom time sharing, mas… nada de resposta!]

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