Home »
01 SET 2018
O avião de Pedrógão
Por Jornal Abarca

“Há, nos confins da Ibéria, um povo que não se governa nem se deixa governar”. Esta frase terá sido proferida pelo General Galba, militar romano, há cerca de 2300 anos. Lembro-me sempre dela quando ouço alguém reclamar que “eles são uns ladrões”, como se “eles” fossem um clube restrito onde a capacidade para usurpar passa de geração em geração como uma dinastia.

Quem são “eles”, afinal? Somos nós. É isso que mais nos custa admitir, mas nós temos a mesma natureza de nos apoderarmos do que não é nosso se para isso tivermos oportunidade. Se isso estiver protegido pela lei, melhor ainda.

Há uns meses todos nos indignámos, naturalmente, com os deputados das ilhas que são reembolsados por viagens que nunca pagaram. Um esquema, dentro da lei, que segundo o inenarrável Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, uma pessoa que esperamos que seja um ponto de equilíbrio e um garante de sensatez, não deve ser alvo de ataque pois os deputados “não infringiram nenhuma lei nem nenhum princípio ético”. Repito: inenarrável.

O país revoltou-se durante uns dias, como se revolta cada vez que se descobre que um deputado com uma casa de luxo em Lisboa declara a casa da avó em Braga para receber subsídios de deslocação, como se revolta quando o árbitro assinala mal um penalty contra a nossa equipa, ou como se revolta cada vez que o Correio da Manhã faz uma capa escandalosa. Porque, no fundo, as preocupações do país são isto: um conjunto de revoltas inócuas.

A semana passada o país acordou para uma nova dimensão da falta de pudor. A denúncia feita pela reportagem “O Compadrio”, da jornalista Ana Leal, mostrava que afinal “eles” não são um clube restrito. Pessoas como nós, um presidente de Câmara de uma vila com menos de 4 mil habitantes, onde todos se devem conhecer, presidentes de pequenas juntas de freguesia, aproveitaram os cargos que ocupam e as fragilidades da lei para corromperem o Estado, aquele que é de todos nós, mas que tratamos como se não fosse de ninguém. Com o esquema, receberam fundos para reconstruir casas já devolutas à data dos incêndios do verão passado, como se tivessem ficado desalojados, e agora têm uma casa nova ou, para os mais astutos, um imóvel para vender e lucrar assim umas dezenas de milhares de euros.

Tudo isto já é condenável, menos para o inenarrável Ferro Rodrigues, acredito. Mas, como referi, atinge uma nova dimensão da falta de pudor por ser um esquema criado em cima de uma tragédia que queimou 53 mil hectares de terra, que deixou muitos amigos destas pessoas sem casa e que matou – oficialmente – 66 pessoas. Uma usurpação assente no maior e mais mortífero incêndio da história do país. Um roubo feito por pessoas como nós. Num país normal estas pessoas estariam já afastadas dos seus cargos como teriam que prestar contas em tribunal.

Há quem receba por voos nunca pagos. O avião de Pedrógão é outro: há quem ganhe casas que nunca arderam. Mas, no fundo, somos como “eles”. É por isso que, 2300 anos depois, continua a haver “nos confins da Ibéria, um povo que não se governa nem se deixa governar”.

(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
 73%     Sim
 27%     Não
( 367 respostas )
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design