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04 DEZ 2018
Saramago, o génio que só podia ter nascido na Azinhaga
Por Jornal Abarca
Comemora-se a 7 de Dezembro, 20 anos da entrega do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago,
(6-11-1922, Azinhaga - 18-06-2010, Lanzarote), uma honra para a aldeia onde nasceu. Fomos tentar compreender o homem e o escritor que nunca renegou as suas raízes.
 
“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”. Foi desta forma que José Saramago iniciou o seu discurso na Real Academia Sueca, em Estocolmo, a 7 de Dezembro de 1998, quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura, o único atribuído à língua portuguesa.

Essa é a primeira frase de um desfiar de linhas numa ode aos seus avós maternos, Jerónimo e Josefa, naturais da aldeia da Azinhaga, no concelho da Golegã. Essas palavras remetem-nos para um lado da vida do escritor que pareceu sempre bem protegido pela capa aparentemente rude que evidenciava.

Vítor Guia, 62 anos, antigo presidente da Junta de Freguesia da Azinhaga durante 17 anos, conheceu de perto “o Mestre”, como repetidamente se refere a Saramago. “Era amigo pessoal dele”, sublinha com evidente orgulho. Foi Vítor Guia quem convenceu José Saramago a apresentar o livro As Pequenas Memórias, um conjunto de histórias das suas lembranças da Azinhaga. Apesar de ter saído da aldeia com apenas dois anos, Saramago passava grandes temporadas em casa dos seus avós, cujas memórias guardou para a vida. A ideia, inicialmente apresentada ao escritor pela sua mulher Pilar del Rio, pareceu-lhe desenquadrada: “As pessoas de lá já não me conhecem”, desabafou. Contudo, a 16 de Novembro de 2006 cerca de duas mil pessoas encheram o pavilhão local para receber o escritor, algo que o deixou visivelmente emocionado, como recorda o antigo presidente da Junta de Freguesia: “Só não chorou por vergonha”

Ana Cruz, funcionária da Fundação José Saramago, lembra-se de uma pessoa “com uma paciência interminável” que “assinou todos os livros que lhe pediram” nessa noite. A partir dessa data Saramago passou a ser presença assídua na aldeia ainda que “de forma discreta”, assegura Vítor Guia. Esse momento terá sido para Saramago como o abrir de um tesouro há muito escondido na sua memória.

Uma das conversas que ambos tiveram em Lanzarote acabaria por eternizar o escritor na sua aldeia. O grupo de leitores Mais Saramago propôs à Junta de Freguesia fazer uma estátua na Azinhaga, mas Vítor Guia tinha a convicção de que o autor seria contra. Ao apresentar-lhe a ideia, num jantar na ilha espanhola, Saramago foi claro: “Quando eu morrer façam as estátuas que quiserem para os pombos me cagarem em cima”, recorda com um sorriso no rosto. Vítor insistiu sublinhando a importância que teria ser o escritor a inaugurar o monumento. “Na manhã seguinte mandou-me fazer a estátua”, lembra. O antigo presidente da Junta de Freguesia acredita que a mudança de opinião teve o dedo da mulher. “A relação dele com a Pilar é uma coisa difícil de explicar, de uma intimidade enorme”, garante. A 31 de Maio de 2009, José Saramago inaugura a estátua em sua homenagem, em que está a fixar o olhar na antiga oficina do sapateiro culto que relata nas suas memórias da Azinhaga. Um simbolismo importante e que não deixou o escritor indiferente. Nesse mesmo dia proferiu a frase: “A Azinhaga não é só a minha terra. É a única terra onde eu realmente podia ter nascido”, evocando assim o orgulho nas suas raízes.

 

A Fundação
O amigo recorda “um homem simples e afável que por trás da aparência de revoltado era uma pessoa de afectos, um homem extraordinário”. Acompanha-nos na visita ao núcleo da Fundação José Saramago na Azinhaga, que tem ainda outro espaço em Lanzarote além da sede na Casa dos Bicos, em Lisboa.

O espaço na Azinhaga foi inaugurado a 31 de Maio de 2008 com a presença de Saramago, estando desde 8 de Abril de 2017 nas novas instalações. “Quando me candidatei em 2005 propus esta obra”, diz Vítor Guia com orgulho, e Saramago recebeu com entusiasmo a ideia. Nos primeiros nove anos de existência a Fundação esteve alojada “na casa com mais história da Azinhaga”, uma antiga prisão que foi sede da Junta de Freguesia. Actualmente está instalada na antiga escola primária da aldeia.

À entrada destaca-se um gigantesco quadro com o rosto de Saramago, ainda jovem. À direita, descobrimos o primeiro de quatro espaços, um auditório onde está a exposição “Saramago e a música”, com excertos dos seus livros estampados nas paredes. Os dois espaços seguintes concentram-se na obra As Pequenas Memórias para recordar as vivências de José Saramago, recriando-se a cozinha e o quarto da casa dos avós Jerónimo e Josefa. Nas paredes apresentam-se excertos da obra e que se enquadram em cada local, além de fotografias da família do escritor. “A filha Violante vem cá muita vez”, diz Vítor Guia.

Um dia Saramago terá confidenciado que “pagava uma fortuna para pôr as mãos em cima dessa cama”, referindo-se à cama que fora dos seus avós. Vítor Guia encontrou-a e colocou-a na casa-museu sem dizer nada ao escritor. “Quando viu a cama ficou agarrado a ela em silêncio, muito pensativo”, emocionado com as memórias que aquele pedaço de ferro lhe trazia. “Adorou a surpresa”, assegura.

Ao terminar a visita encontra-se a loja que além das obras do escritor para venda tem algumas recordações como pedaços de jornais, o discurso proferido em Estocolmo ao receber o Nobel ou a certidão de nascimento. “Sabe que ele foi das poucas pessoas a dar nome ao pai?”, questiona Vítor Guia como quem se prepara para dar a resposta automaticamente. “Ele nasceu José de Sousa, Saramago era alcunha”, ficando como apelido por erro de quem o registou. “O pai como não queria que o filho tivesse um apelido diferente do seu porque as pessoas podiam começar a dizer outras coisas, foi ao registo e ficou Saramago também”, conta sorridente.

Tanto Vítor Guia como Ana Cruz acreditam que “temos de valorizar o nome de Saramago para trazer pessoas à Azinhaga”. Por isso, a nível local estão a ser preparadas outras obras para que os visitantes conheçam a terra para lá das paredes da Fundação. “Está a ser construído um passadiço junto ao rio com treze painéis que conta a história do livro As Pequenas Memórias e vamos fazer ‘Os Caminhos de Saramago’, com pontos de referência pela aldeia que estão retratados no livro”, conta Vítor Guia. Curiosamente, diz Ana Cruz, As Pequenas Memórias é o livro que mais se vende na loja da Fundação.

 

O Escritor
Para Maria Augusta Torcato, natural de Ervideira, em Ponte de Sor, mas radicada há cinco décadas em Alcanena, a escrita de Saramago é intimista “com uma representação do humano nas várias dimensões”.

Há vestígios da ruralidade que Saramago conheceu na Azinhaga na sua escrita? Para a professora de Português, prestes a completar 57 anos, podemos atentar que “os heróis das suas obras são sempre pessoas simples, sem a noção da sua grandeza”, um pouco à imagem dos seus avós, a grande referência de vida para Saramago. A primeira obra que Maria Augusta leu de Saramago foi, como muitos dos seus leitores, Memorial do Convento no final da década de 1980 mas “só mais tarde comecei a descobrir a essência da obra” do escritor. Carta para Josefa, minha avó é um texto que leva Maria Augusta às lágrimas. “É uma imagem que me diz muito, também vi aquelas coisas”, confidencia. “É um pouco de nós”. Essa carta e o texto de Estocolmo são duas obras “que mostram as condições humanas de alguém que nunca renegou as suas origens”, nem mesmo após a polémica com Sousa Lara, a propósito do seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que o levou a exilar-se em Espanha.

Essa será uma das grandes virtudes da escrita de Saramago, a forma como “dignifica e eleva aquilo que a maior parte das pessoas quer esconder”, analisa. A verdade é que pela estrutura social que existe “não era previsto ele ter chegado onde chegou”, e também na sua escrita rompe com os costumes.

“Quando penso em Saramago não penso no Nobel. O que sinto é orgulho. Orgulho por ser parte de nós, sem pejo de mostrar de onde veio, sem se querer esconder, incentiva-nos a ser mais nós, imortalizou-se desta maneira”, refere com visível entusiasmo. A história de Saramago, de quem veio do fundo dessa estrutura social e a pulso chegou ao topo, é um pouco a história de muitos de nós, ainda que só um tenha ganho o Nobel.

A crítica social está sempre presente, muitas vezes com o recurso à ironia. A escrita de Saramago “é um choque permanente. Ao nível da linguagem, das figuras de estilo. Mas faz-nos pensar sobre as coisas”, comenta. “Há um momento em que temos de nos interpelar, num processo de consciência” e é isso que Saramago nos leva a fazer. Reconhece que “a relação inicial dos alunos com Saramago é má”, por vezes por ideias pré-concebidas “relacionadas com a questão da pontuação”. Desconstruir um texto do autor é uma tarefa complicada, reconhece, mas indispensável para que se compreenda a mensagem. “Posso passar horas numa página, mas tenho de a entender”, incentivando os seus alunos a fazer o mesmo processo.

Concorda que Saramago apresenta “uma vertente universal, humanista” que choca com a “doença crónica de Portugal”, cujo diagnóstico está representado pelo autor na obra O ano da morte de Ricardo Reis. “Ele é único e os portugueses têm dificuldade em aceitar esses únicos”, sublinha. Sobre o Nobel, considera que “foi um espanto. Ser um português e ser Saramago” e que isso “abalou muitas coisas” pela pessoa que era. Conhecido, também, pela sua veia comunista e de forte crítica à Igreja, o que lhe valeu alguns dissabores, isso fazia com que se “confundisse a pessoa com o autor”. Sem sentimentos de nacionalismo bacocos, Maria Augusta Torcato considera que a atribuição do prémio “exalta o nosso orgulho naquilo que somos, na nossa identidade e, nisso, Saramago projecta-nos e dá-nos uma dimensão que mais ninguém nos pode dar”, afirma.

Contudo, o que mais a fascina em Saramago é, precisamente, a forma como rompe com a estrutura social. Carregada de livros e apontamentos para a nossa conversa, faz uma leitura de um excerto do capítulo IV do livro A Pérola, de John Steinbeck: “A ideia era boa mas contra a religião e o padre mostrou isso bem claro. A perda das pérolas foi um castigo para aqueles que procuravam sair da posição que tinham na vida. O padre disse de maneira positiva que cada pessoa é como um soldado mandado por Deus para montar guarda a algum ponto da fortaleza do universo. Alguns ficam nos baluartes e outros bem em baixo, na escuridão das muralhas. Cada um deve, portanto, ficar firme no seu posto e não abandoná-lo”.

Sem perder o entusiasmo diz com um brilho nos olhos: “Saramago rompe com tudo isto”. Faz-se silêncio. Um silêncio cúmplice de duas pessoas que sabem o que significa sair da escuridão das muralhas.

 
 
 
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