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01 MAI 2020
CONTO - "O Giraldo"
Por Manuel Fernandes Vicente

Poucos homens dos lugares e povoações nas faldas da serra o tinham alguma vez avistado, e se isso acontecera, podiam dar-se por felizes por agora terem algo para contar sobre o Giraldo.

Há muito tempo que era temido nas imediações daquelas serranias cheias de carvalhos, castanheiros e vinhedos, fragas, penedias dantescas e matagais cerrados em todo o seu perímetro. Atravessavam estes ermos terríveis escassos carreiros de pé posto feitos por caminhantes e almocreves, e outros um pouco mais largos, por onde podia transitar sem muita folga uma junta de bois a arrastar algum carro de lenha que alguém fosse cortar aos bosquetes da serra. Poucos homens dos lugares e povoações nas faldas da serra o tinham alguma vez avistado, e se isso acontecera, podiam dar-se por felizes por agora terem algo para contar sobre o Giraldo. E era das narrativas destes homens, recompostas pelo medo coletivo dos povos próximos, que se alimentava a história do salteador, que um dia se refugiara nas montanhas depois de um naufrágio do barco de piratas que comandava, e em que fora o único sobrevivente. Se no mar fora pirata sem escrúpulos, nas sendas destas montanhas, cujas penhas lhe serviam de reduto inexpugnável, tornarase já há muito num assaltante e num vil canalha sem princípios, incapaz de qualquer respeito pela vida humana. Parecia ter sido talhado neste molde de aço, de na sua existência absurda nunca ter conhecido limites. Quem precisasse de atravessar aqueles altos ermos e aquela orografia temível raramente o fazia à noite, e ainda menos sozinho.
 
− É o que tens ou é a tua vida!..., assim surgia de sobressalto saído como um avantesma de arma em punho de trás de qualquer recanto ou duma sombra  o Giraldo, ágil e sem temor de nada. E aos caminhantes, pagando ou não com a vida, roubava tudo o que levassem e a que ele desse valor. Por vezes, como os lobos que uivavam pela serra, aproximava-se furtivamente dos povos e levava galinhas e coelhos numa saca para o seu refúgio, uma gruta camuflada, dizia-se, mas ninguém sabia onde era. Uma vez todos os homens dos povos vizinhos combinaram fazer-lhe uma batida, como aos javalis. Uma caça ao homem com cães de busca para o encontrar e abater, mas nada descobriram, nem o mais leve sinal, rasto ou vestígio da sua presença.
 
No início de uma noite de inverno, com a neve a cair intensamente, o salteador encontrou desamparada num trilho da montanha uma jovem e pobre mulher, muito bonita, que fora procurar lenha ali perto para si, para o filho, e para os pais, já idosos. Assim se aqueceriam, e ainda podiam cozinhar algo no borralho da lareira no chão a um canto da casa. Compreendendo por instinto quem era o homem que a surpreendia, disse-lhe a mulher que uma doença estranha grassava pelas aldeias, e que poucos a ela escapavam, ela própria e a família foram atingidos, já vivia com o espetro da morte no seu horizonte. Condoeu-se o malfeitor com a mulher tão indefesa e com a situação extrema em que se encontrava. E, pela primeira vez desde há muito tempo, sentiu a alma atravessada por um sentimento de humanidade e um bafo de calor no coração. Tanta fragilidade tão exposta fizera nascer nele emoções de que se julgava despojado em absoluto. Segurou na mulher por um braço, levava a lenha de troncos debaixo do outro, e no caminho para casa dela cortou ainda algumas plantas que lhe deu para que as guardasse bem.
 
− Toma estes raminhos, ferve-os em água na tua lareira, e toma o chá bem quente. Eu também tive esse mal de que falas, e em poucos dias fiquei bom.
 
Giraldo sentia que aquela mulher tinha despertado uma emoção intensa que nunca sentira por ninguém, e a compaixão profunda por aquela jovem converteu-o noutra pessoa. Pediu-lhe apenas que não dissesse a ninguém que o vira, e que ele a ajudara. Regressou à sua caverna e sentiu no íntimo que agora se tornara noutro homem, de quem ele próprio já gostava. Em vez de assaltar, roubar e matar, passou a oferecer arbustos medicinais e a ajudar como pudesse quem precisasse ao passar por ali.
 
A doença de que a mulher padecia, ela e quase toda a população das aldeias perto da serra, era uma estranha peste trazida por cobras e ratos, e poucos dias também ela se restabeleceu, tal como a sua família. Outras pessoas que encontrou, igualmente doentes, igualmente o Giraldo ajudou com as suas plantas medicinais, e as recuperações foram crescendo com as ervas milagreiras que dava a quem encontrava ou agora já iam à sua procura, pois só ele as sabia descobrir.
 
Embora muito tardiamente, a sua fama de salteador assassino e ignóbil acabou por chegar lá longe ao castelo onde se refugiara o marquês, que temia a peste e evitava quem quer fosse. Mas logo ordenou a um grupo de quatro sequazes que, morto ou vivo, lhe trouxessem o vagabundo. Partiram estes nas suas cavalgaduras à sua procura e chegados àquelas montanhas, que tiravam o ânimo a quem as tivesse de atravessar, não tiveram de percorrer muito até o descobrir. Giraldo aproximou-se deles exposto e com brandura, perguntando se andavam perdidos e queriam que lhes indicasse algum caminho. Nada tinha a recear, pois já não era o monstro abominável da serra. Mas os lacaios não iam para conversas. Três desembainharam logo espadas para que não escapasse. E logo Giraldo foi atingido por um balázio pelo homem que lhe ficara nas costas, caindo e arrastando-se devagar até à beira do caminho, como se quisesse ainda dizer algumas palavras. Mas não recuperou o alento, e já nem palavras sussurradas saíram da sua agonia.
 
Correu célere como um relâmpago a notícia do homicídio à queimaroupa do malfeitor, que se convertera num homem piedoso depois de encontrar uma mulher que o mudou. Durante anos de assaltos e de arremetidas com uma frieza cruel, sempre se saíra airosamente, semeando o pavor por todas as redondezas. Um dia a sua índole mudou abruptamente, tornou-se numa pessoa benigna, e as suas ervas ajudaram as povoações a vencer a epidemia. Na berma onde desfaleceu, nasceu uma árvore que se tornaria enorme, de frutos vermelhos e um aroma delicado. O povo esqueceu os pavores antigos e, impressionado pela transformação do homem, passou a considerá-lo mártir e santo. E no local construiu uma capela para onde se conduz ainda hoje, todos os anos, no verão uma enorme romaria. As pessoas perdoaram-lhe. No fundo, quantas vezes não somos mais do que a soma de tantas circunstâncias infelizes? E agora, na sua fé, fazia-lhe promessas e pedia…
 
 
 
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