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03 SET 2020
CONTO: "O Vagabundo da Harmónica"
Por Manuel Fernandes Vicente

Mané, na aldeia do Cortiçado, Zeca, Faustino, Zacarias ou Didi outras povoações por onde passava, chovesse sem piedade ou estivesse um calor desumano, a sua vida era errante.

Era com alguma regularidade que o homem, que nunca dizia o seu nome, mas que na comunidade local todos costumavam chamar por Mané, passava com vagar pelas ruas da aldeia. Na verdade, nunca se dirigia para nenhum lugar em particular, por isso não tinha pressas. Atravessava o largo, onde havia uma taberna encardida num recanto, e chegava à igreja onde, mesmo com as portas fechadas, pousava a mochila e encontrava o repouso dos guerreiros na arcada santificada da entrada principal. 

Chamavam-lhe Mané naquela aldeia do Cortiçado, como seria Zeca, Faustino, Zacarias ou Didi nas outras povoações por onde passava, chovesse sem piedade ou estivesse um calor desumano, a sua vida era essa, errante como a de um maltês, que ele não era, até seria talvez o seu oposto. Altura mediana, moreno, olhos castanhos e inquietos, barba de alguns dias e a idade a rasar aos 40 anos, havia quem achasse que ele era um vagabundo indigente, vivendo da caridade do povo mais humilde, que com ele repartia o pouco que tinha. Dos ricos, nem se aproximava, porque o mais provável era que soltassem os cães e deixarem-no depois maltratado e relegado à sua sorte junto a um muro ou na valeta da estrada. Mané era adorado pelas crianças, que logo que chegava o procuravam aos bandos. Para elas, quando o homem regressava à aldeia era o circo que chegava ao pé delas. Não era faquir, nem trapezista, não cuspia fogo, nem trazia leões ou elefantes. Mas contava-lhes histórias, e com elas eles imaginavam muito mais do que isso. À sombra da pequena igreja ou sob o alpendre fresco da escola primária, o Mané, corpo franzino e malandro, sentava-se no chão, pernas cruzadas e braços soltos pelo ar para melhor adornar em coreografias as suas narrativas, palavras simples, mas cheias de intensidade, surpresas e magia, que os miúdos ouviam suspensos e fascinados. Assentava-se no chão, ficando rasteiro com as crianças, para que elas o olhassem de frente, e melhor sentissem toda a intensidade das histórias, um pouco tristes, que eles julgavam inspiradas na sua vida, igualmente triste, depois de há alguns anos ter ficado viúvo, e perdido um filho e o emprego pouco depois. Mas o homem não encantava as crianças só com os seus contos. No final de cada história tirava uma harmónica de boca do bolso das calças e tocava melodias populares e infantis que eles adoravam ouvir e os enfeitiçava.

Mané precisava dos outros, não pedia, mas aceitava o que lhe dessem, fosse comida, moedas ou algum casaco ou camisas já muito usadas. Na verdade, apresentava-se nas aldeias como uma espécie de homem dos sete ofícios. Na mochila que o acompanhava trazia algumas ferramentas, e era com elas que acudia aos que também dele precisavam, fosse como canalizador, sapateiro, para arranjar as varetas de algum chapéu de chuva, agrafar pratos partidos de loiça afamada, afiar tesouras ou para pequenos consertos de eletricidade, em móveis, com algum burro ou vaca que coxeasse ou no que fosse necessário. Pagavam-lhe como podiam, ele aceitava grato e com um sorriso o trabalho solicitado e o que lhe pudessem dar por ele.

Passava algum tempo na aldeia, e um dia Mané partia, como se ali tivesse cumprido a sua missão. O povo achava agora esquisita a sua ausência. Durante umas semanas habituaram-se à sua presença óbvia, e agora estranhavam passar pela escola, pelo largo ou pelo adro da igreja e já não o encontrar rodeado de crianças e os seus braços a representar andorinhas ou gaivotas no ar ou com um pau na mão a desenhar na terra dura do chão os personagens em ação das suas histórias. Mesmo os homens nas tabernas, que lhe pagavam a bebida e lhe pediam por algum conserto em casa ou no palheiro, já não tinham quem os animasse nas rodadas de tinto ou de imperiais. É que era ele quem espevitava o vinho e destravava os ânimos quando se sentava no banco corrido e sabujo junto a uma parede e pegava na mesma gaita-de-beiços, que encantara as crianças e agora endoidecia os homens que cantavam num coro ébrio Grândola, Vila Morena, Chico Fininho, rapsódias e as músicas mais populares. O homem ia ser agora o Zeca, o Faustino, o Zacarias ou o Didi noutras terras. Um dia voltaria…

Mas o Mané não era um santo, era apenas um homem, com as suas qualidades e as suas fraquezas. Os petizes tinham apreço pelas suas lendas e narrações, e os homens, especialmente se já estavam bem lubrificados pelo tinto acabado de sair do tonel fresco, aderiam com excitação às notas saídas da sua gaitade-beiços, que enchiam a taberna de humor e de cenas picarescas. Mas eram as jovens mulheres da aldeia, sobretudo, as mais sublimes e disponíveis (apesar de muitas já casadas também não o conseguirem evitar) quem maior fascínio demonstrava pelo magnetismo humano, quase animal, do Mané. A aldeia era um meio tão pequeno e socialmente vigiado que deviam mostrar a sua sensibilidade feminina por sinais mínimos, da forma mais velada e com toda a descrição. Era a arte bem feminina de encantar, prometer e, sobretudo, de semear dúvidas com sinais duplos. E Mané não só captava esses sinais como não era insensível aos encantos de algumas, colaborando numa sedução que era recíproca e faz já parte há muitos séculos da história do ser humano. No fim de algum conserto nas canalizações da casa de uma admiradora cantava uns fados tristes num timbre puro, mas sussurrado, ou tocava baixinho na harmónica umas baladas cheias de nostalgia. E depois iam ambos atrás do ímpeto do momento, que nem ele nem ela trocavam por nenhum paraíso prometido, pouco lhes importando nessa altura que a alma fosse ou não imortal, e muito menos qual o seu destino.

No final o contador de histórias, animador das tascas e encantador de mulheres prestáveis partia, seguia para as outras aldeias e vilas para onde ia a rota da sua vida, ou seja, para onde calhava. Aí ia ser o Zeca, o Faustino, o Zacarias ou o Didi, e a história destes alter egos involuntários nas novas povoações ia mimetizar a do Mané no Cortiçado. A mesma magia narrativa entre a miudagem, a harmónica que destravava as conversas na taberna, a destreza do homem dos sete talentos, e o desfazer de amores entre as mulheres quando partia, e havia sempre o dia em que se iria embora sem se despedir, nem dar sinais de que o faria. Tal como chegava, assim abalava. Era um ciclo quase biológico e cúmplice que ocorria entre o Mané e as povoações por onde passava, quase sempre as mesmas, e onde a certa altura já todos pareciam aguardar por ele, como aguardavam pelas aves de arribação. As crianças esperavam pelos novos contos, os homens pela velha harmónica que animava toda a malta, e as mulheres já guardavam as facas cegas e as tesouras rombas para ele as afiar com os seus instrumentos de afiar e “desamolgar” - e algumas delas, com mais fogo no corpo, até para algo mais. 

Um dia de primavera Mané chegou de novo a Cortiçada, e foi impossível evitar o que era notório. Duas das crianças gémeas que brincavam no adro da igreja, bastante parecidas entre si - eram também muito semelhantes a Mané. Depois da surpresa, veio a compreensão, há muitos anos que passava na Cortiçada, e por lá deixou as suas marcas. Partiu, mas nas outras aldeias do costume, também ocorria este estranho fenómeno da replicação: outros adros e outros bandos de crianças, e algumas eram a sua cara chapada. Percebeu então o que algumas das mulheres que tinha amado naquelas aldeias, lhe diziam depois dos calores mais íntimos: “Eu gostava muito de ter filhos, mas não aguento a ideia de um dia ter de aturar um marido”. Ali, os homens batiam nas esposas como batiam nos burros, e ele parecia ter passado como um cavaleiro andante libertador…

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