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08 OCT 2020
CONTO - "A metamorfose de Sereiana"
Por Manuel Fernandes Vicente

Sereiana tinha nascido num cabo do mundo, numa daquelas finisterras que se tornaram em lugares mágicos e misteriosos, que assim eram gerados pela sua indefinição no mundo. Eram sítios sempre surpreendentes e críticos, a natureza tinha feito desses promontórios íngremes de rochas disformes e abruptas a acentuar os abismos locais temidos, e a história desses locais, mais o medo que eles sugeriam, tinha-lhes garantido muitas lendas que lhes davam alma e espírito. 

As finisterras, os pontos híbridos de geologias assustadoras, onde os seres humanos assomam para se assombrar com o mar, são sempre mais que simples lugares. Definem o fim de um caminho por terra, e o início de outro, pelos desígnios intangíveis do oceano - e também são o recíproco se se vier do mar à procura de chão firme. Não admira que estes ermos se tenham transformado em espaços de espiritualidade, e até de uma intensa religiosidade popular, transcrita em romarias, círios, capelas e santuários sobre escarpas íngremes e com o azul do mar a oferecerem motivos de recolhimento e contemplação. Esta natureza dupla das finisterras, que sugerem o fim de uma condição - a vida - e o início de outra, a que se segue depois desta concluída, sempre fascinou todos os seres humanos. É certo que, depois de pagã, se cristianizou, e bastante, mas a sua existência já tinha perturbado os nossos mais remotos ancestrais, que nestes cabos do mundo, cheios de rugas tectónicas, gnoses e mitos sagrados, deixaram muitos sinais desse seu deslumbramento de dimensão antropológica.

Foi numa destas paisagens sagradas e de memória que Sereiana um dia foi concebida, fruto dos amores de um jovem e pobre pescador e de uma belíssima sereia filha de outra sereia e de um rei das profundidades oceânicas. Ambos atraídos pela fenemonologia e pela força telúrica da falésia, foi numa das suas grutas que ocorreu o abraço entre ambos, e ali mesmo consumaram na carne o encontro de onde germinou a pequena Sereiana. A mãe proviera do fundo do oceano incitada pela curiosidade do que haveria para além daquelas funduras e também pelas narrativas de outras sereias mais antigas e do que elas conseguiam dos homens com os seus cantos. O pescador deslumbravase com o mar e conversava com ele, em silêncio, no alto da arriba, outras vezes desafiava-o na sua pequena embarcação, equilibrando-a sobre as tempestades e as ondas do mar quando lhe ia furtar algum peixe da época para o seu dia a dia. Sereiana foi uma bênção para ambos, duas criaturas que tinham vencido com o seu enlace os tabus e as limitações da sua espécie e do seu género. Sereiana era uma terna criatura híbrida, marinha e terrestre, não falava fora de água, mas cantava dentro dela de um modo que a todos seduzia, um dom que recebera da mãe. A sua cabeça era humana, mas tinha um par de guelras onde devia começar o pescoço, o tronco estava coberto de escamas, como se fossem um revestimento metálico de uma guerreira do futuro, e de onde ganhavam vulto dois belos seios de mulher. Já a cauda de peixe dividia-se em duas metades que sugeriam as pernas de uma mulher terminadas em duas exóticas barbatanas. Sereiana gostava de ouvir as trovoadas no mar em silêncio, sentava-se num rochedo, como o pai, e também gostava de cantar as canções marinhas da sua mãe por cima dos ventos e do uivo das tempestades. Apreciava remar ao lado do pai nas suas pescarias, mas doía-lhe o sofrimento dos peixes que ele apanhava nas redes ou no anzol, e aprendia as trovas do mar com a mãe, mas também com as serpentes, os tritões e outros monstros marinhos.

Cresceu dividida na sua condição ambígua em muitas dimensões. Sereia e humana (mas não muito), rica e modesta, terrestre e marinha, pois tinha sido imaginada na gruta de uma finisterra, gostava de qualquer coisa, e ao mesmo tempo detestava-a intensamente, queria agradar a todos e, simultaneamente, desejava que a ignorassem ou até odiassem. Mas o seu principal problema era tomar uma decisão, escolher um rumo e segui-lo, pois ficava a imaginar o que perdia por não seguir pela outra ou pelas outras alternativas. E isso angustiava-a. Queria e não queria… Adorava a sua condição anfíbia, e ao mesmo tempo odiava-se por ser assim, e não ser apenas uma sereia (como as outras), ou uma mulher, ou um homem... Talvez essas hesitações fossem o reflexo natural do que os outros sentiam em relação a si, no fundo Sereiana não pertencia a nenhuma tribo, nem a nenhuma condição. Nem na terra nem no mar pertencia a um “nós”, fazia sempre parte dos outros, era sempre um “deles”, daqueles que não eram parte de nós. Esta angústia levou-a a refugiar-se um dia dentro da caverna do cabo do mundo. E nela se recolheu e fechou durante alguns meses, sem comer nem beber, como um bicho-da-seda que se encerra no seu casulo para uma metamorfose, como a que ela esperava para si, fosse qual fosse o resultado…

No fundo, Sereiana sofria com a recusa dos outros em admitir a diferença. O mundo no fundo do mar radicalizara-se e tinha-se entrincheirado nas suas certezas, e para os seus seres marinhos, os humanos nem sequer mereciam viver. E para os semelhantes ao seu pai, que viviam com todos os dogmas de serem seres superiores e cultivavam os dogmas, acima de todas as certezas, quem vivia no fundo dos mares é parque era lá que merecia viver. A jovem era diferente, e entre os dois mundos tribais, geridos por preconceitos e fechados como conchas, ser diferente era praticamente uma condenação que não precisava de sentença lida. A jovem estava presa nesta lógica das duas tribos que não entendia outro pensamento que não fosse o seu. Fosse qual fosse o ser que rompesse de dentro o casulo em que se fechara, o seu destino seria sempre melhor que o seu. Pediu apenas, quando se fechou na gruta como um bicho-da-seda, que esse se metamorfoseado deixasse de ser distinto e pudesse pertencer a uma tribo. Pode parecer absurdo, mas todos os mundos pareciam ter horror às diferenças, como se elas os pudessem pôr em causa e às suas lógicas, e assim fazer descarrilar.

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