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02 NOV 2020
CONTO: "O sábio cético"
Por Jornal Abarca

Os trilhos e as encruzilhadas multiplicavam-se, seguia num rumo errático e pela primeira vez na sua vida, a perder-se, a deixar-se ir, sem o controlo de tudo o que o envolvia.

Era um cético. Para ele não havia transcendência que resistisse à razão. E esta acabava sempre por a desmentir. Nem havia magia que não se esfumasse perante a sua argumentação arguta e engenhosa, cheia de conhecimento e muita experiência. Era um sábio. Para ele, uma lágrima era um simples muco com água, cloreto de sódio, alguns sais minerais e vestígios de proteínas e gorduras. Nada disto lhe devia ser retirado para ser lágrima, mas também nada mais lhe devia ser acrescentado. Era uma composição química. Apenas. É claro que havia uma fonte que as produzia, as glândulas lacrimais, e essas gotas eram também uma destacada barreira que integrava o nosso sistema imunológico. Alguma física de fluídos, química dos sais e muita endocrinologia. Mas apenas isso, e nada mais, era a ciência que assim o determinava.

Podia conjeturar-se o que se quisesse com ele, sobre a importância das emoções, dos afetos, dos sentimentos, de algum suspiro, de um amor que se perdera ou de uma ilusão que se evaporara. O que se quisesse. Que contivesse algo de mais espiritual. Que para este sábio analítico e cético, nada disso era sério, e muito menos se podia reconhecer sequer como conhecimento ou saber. Era tudo um manto de intrujices, panaceias e tretas, como ele dizia, sem esconder um certo fastio por esses casos. Se algo ficava fora da verificação experimental e do escrutínio científico, então não existia, nem sequer era para levar em consideração. Ou até merecer respeito. Aldo era um pouco fundamentalista no seu ceticismo sábio, recusando abruptamente tudo o que se apresentasse contaminado com adjetivos como quântico, homeopático, alternativo e holístico, de uma lista muito mais extensa. Detestava ouvir falar das frequências sintonizadas com o movimento new age, mesmo que alguns amigos as tivessem abraçado e feito delas uma comunhão para a vida. Para Aldo eram tretas. Pseudociências, cultura de charlatões armadilhada de conceitos só aparentemente científicos, em que alguns se aproveitavam sem escrúpulos da ingenuidade e da boa vontade das pessoas…

Tal como encarava a vida pela via estreita e simplificada das células, eram de diferentes formas as células, é certo, mas nada mais aquém nem para além delas. A matéria, para ele, era simplificável e reduzida aos arranjos e às permutações de uma centena de tipos de átomos que se uniam em moléculas, e estas em aglomerados que depois se voltavam a combinar entre si, obedecendo a regras, a princípios e a leis universais. Apenas a ciência era fonte do saber genuíno, tudo devia passar no filtro da razão, da objetividade, da comprovação, da análise e do método num laboratório. Não sendo verificável no crivo experimental, no pensamento lógico ou nas leis reconhecidas pelas cátedras académicas, qualquer saber excedente a isso não era verdadeiramente saber, era nada, pois de nada valeria.

O cientista envelhecera na sua cápsula de certezas, e, apesar de o tempo avançar por dentro dos anos e das décadas, ele parara. Tinha rigor, tinha método, era persistente, mas, com tanta rigidez de pensamento, as suas asas tornaram-se de aço, não dava espaço à fantasia, e assim, com aquelas asas e sem a leveza de uma única ilusão, nunca iria voar, como nunca iria amar e apaixonar-se por nada, e muito menos por alguém.

Naquele dia de novembro, Aldo quis ir visitar o bosque montanhoso que se situava perto da sua mansão na cidade. Era um bosque enorme, cheio de carvalhos, faias, castanheiros, bétulas, plátanos e álamos frondosos. Há anos que morava na enorme casa onde construíra o seu mundo, mas nele nunca permitira que alguém entrasse, e constatava que nunca fizera uma visita até esse imenso arvoredo a povoar montanhas a perder de vista. É verdade que já ouvira algumas histórias que dele se contavam. Histórias do tempo dos celtas, que o adoravam, e nele deixaram muitos sinais da sua presença. Histórias de fadas, e de gnomos, que habitavam as suas colinas, de ascetas e de duendes que se refugiavam em falésias ou atrás de rochedos, ou em grutas que laboriosamente construíram e onde se ocultavam para não serem vistos pelo mundo. Histórias de monges que oravam 16 horas por dia e comiam as raízes de arbustos que esgravatavam em redor do enorme convento agora abandonado e em ruínas. Tretas e lérias. Umas figuras mais reais, outras lendárias…Mas em nenhuma delas, nem nas suas ações, ele acreditava, eram devaneios de crédulos e gente pouco culta que embarcava atrás de qualquer crença mais piedosa ou simples para explicar um mundo complexo e que não entendiam, e encalhava num desengano. Nessa manhã de um outono frio e brumoso, talvez porque se encontrava já algo esgotado pelo trabalho e desiludido com o mundo, decidiu penetrar sem destino pelos trilhos do imenso arvoredo… Os trilhos e as encruzilhadas multiplicavam-se à sua frente, seguia num rumo errático e, na verdade, disposto, pela primeira vez na sua vida, a perder-se, a deixar-se ir, sem o controlo absoluto de tudo o que o envolvia. E assim seguiu durante algumas horas de caminhada por entre ribeiras emolduradas por freixos, salgueiros, o piar das aves e o coaxar contínuo de algumas rãs, passando por clareiras misteriosas abertas entre dezenas de carvalhos que pareciam observar a sua passagem, e por fim trepou por uma subida sinuosa com um bonito tapete de folhas douradas e amarelecidas que consagravam o fim de mais um ciclo.

À medida que subia o percurso deu lugar uma escadaria cada vez mais íngreme, e como agora as árvores já escasseavam, começou a sentir a grandeza das serranias e do voo das águias, até a do mar que surgia lá longe fundindo o seu azul com o do céu. Começara a entardecer, e o sábio sentia já o cansaço e também a vertigem das alturas, mas também uma força estranha que lhe dava energia para continuar a subir e a vontade de ir mais longe, mais acima… Até que atingiu o cume do monte que lhe oferecia uma paisagem absolutamente sublime, de uma pureza prístina que quase parecia irreal. Atrás de si ouviu o canto sedutor de uma voz feminina. Voltou-se e, não muito distante, viu uma mulher ainda jovem e de uma beleza excecional, cabelos negro-azeviche e um olhar belo, fixo e intenso. Parecia estar ali há algum tempo à sua espera. Aldo logo ali ficou apaixonado pela jovem. A sua beleza era absoluta, e a sua paixão, à luz da razão que costumava usar, parecia-lhe também absolutamente inexplicável. Mas, apesar de tudo, era real, tão real que sentia o fogo de uma desordem intensa a arder dentro de si. Não a sabia explicar, mas sentia-a. Olhando-o com os seus olhos castanhos e de um brilho cheio de mistério, a jovem parecia também magnetizada pelo velho cético.

- Vens até aqui, e beijas-me?, sorriu-lhe.

Era um amor à primeira vista que ali nascia, e Aldo presentia agora a estranha emoção de uma felicidade à escala humana, face à qual todo o seu saber, as suas certezas e teorias desmoronavam como um castelo de cartas.

Entre o local onde estava a mulher e o cume do monte onde agora o sábio se encontrava havia, porém, uma ponte, muito estreita, a oscilar e sem quaisquer cordas de segurança. Por baixo dela um abismo tão fundo que este não se via…

Aldo não sabia porquê, mas sabia que já amava muito aquela mulher, que lhe surgira como uma dádiva que não entendia. Mas também sentia que tinha de ultrapassar o mundo de certezas, de rigores e de métodos para a ter nos seus braços. Ele era um sábio, mas também descobrira que havia um ser humano dentro de si. Deitou pelo abismo abaixo as arrobas de axiomática de aço que trazia consigo, e sentiu-se mais leve, quase capaz de voar.

E avançou pela ponte em direção à sua deusa…

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