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30 NOV 2020
CONTO: "O menino dos espelhos"
Por Manuel Fernandes Vicente

Deixara as ideias e as distintas personalidades poéticas e heterónimos crescer sem controlo dentro de si, como um dia deixara crescer e multiplicar as imagens caleidoscópicas.

O petiz era o único menino naquela aldeia piscatória, vivia sozinho naquele mundo deserdado pelos autarcas, pelo Estado e por todos, sem mais ninguém para brincar, e apenas com os avós maternos, que também a mãe tinha partido, sem ao menos lhe deixar uma palavra de consolo ou uma lágrima de emoção. E era assim que o Miguel se sentia, deserdado por todos, e órfão de pai, morto às mãos da droga, e da mãe, viva incerta, e com os sentimentos maternos há muito falecidos. 

O pequeno entristecia-se por não ter outros meninos com quem pudesse jogar, correr, saltar e trepar pelas árvores ou pelos penhascos junto ao mar, mas um dia descobriu, pelo espelho interior de um humilde móvel do casebre de pescadores dos avós que este lhe oferecia a imagem de um menino de longos cabelos loiros e desgrenhados, a boca ainda lazada da última tablete de chocolate que comera e uns olhos tão castanhos mel como os seus. Percebeu que mais que um cúmplice sintonizado consigo, era a sua imagem que o espelho lhe devolvia, numa harmonia de ballet que nem o facto de a imagem ser simétrica (sendo ele dextro e o seu alter ego um canhoto sem emenda) perturbava. Sentia-se mais acompanhado com este petiz como ele, olhavam com uma cumplicidade terna e secreta um para outro, cantavam depois numa harmonia irrepreensível e, até nos gestos, a coreografia sincronizada parecia exaltante… Pouco depois o jovem percebeu que com outros espelhos por perto novos miúdos vinham brincar com ele, faziam os mesmos gestos, mas todos pareciam diferentes porque surgiam dos mais diferentes ângulos e em distintas perspetivas. Sugeriam-lhe um caleidoscópio, como os que vira um dia num enorme écran do cinema, de muitos miúdos que se imitavam uns aos outros Começou por se deslumbrar com todos aqueles efeitos e coloridas reverberações visuais, sobretudo se fizesse gestos surpreendentes e rápidos. Mas, gradualmente, toda essa magia se foi desvanecendo. No fundo, sentia que estava a criar uma ilusão para si próprio, era só ele que ali estava, ele e muitos mimes a mimetizaremse entre si… Este mundo, aparentemente cheio de diversidade era, na verdade, muito monolítico, só as suas decisões e movimentos existiam, nada o surpreendia, pois tudo partia de si.

Da casa dos avós ainda saía para ver o mar a ondular, mil gaivotas em voos aleatórios, os pescadores a chegar exaustos à praia com as suas pescarias e algum avião a riscar o “plasma” azul do céu. Nele aprendeu a ler com a avó, e muito cedo se encantou com as histórias que ela lhe lia dos livros e que ele gostava de ouvir repetir cem vezes. Depois já os lia sozinhos, sabia o que as palavras queriam dizer, e assim as aprendeu a todas, e outras. Mas a sua vontade de brincar com outros meninos e outras meninas parecia também órfã, pois não os tinha. À medida que crescia ia saindo cada vez mais para o mar, primeiro com o avô, remando, quando este já se mostrava cansado, e mais tarde já sozinho para ganhar o sustento e o amparo para levar aos que lho deram, quando ele nada tinha nem podia.

Tinha ouvido atentamente o avô um dia ao fim da tarde de inverno, quando este o chamara para junto de si à lareira ateada no chão, e o sentara aos seus joelhos com o oceano à vista, e ele já tinha idade para entender certas coisas, que as crianças que ficam sem pais ficam mais pobres por isso, mas amadurecem mais depressa que os outros, acordam mais cedo para o que é a crueza do mundo, e até podem desenvolver certas aptidões que as crianças mais protegidas, naturalmente, nunca conseguirão. As carências tiram, mas também dão. Como uma ave que, empurrada do ninho, tivesse que aprender prematuramente a voar e a procurar sustento, enquanto as outras, ficando mais tempo no aconchego, só o farão mais tarde quando o corpo e as asas já tiverem boas penas e bons alicerces. Na vida nada é fácil, e talvez que crianças como o Miguel, começando sem amparo e com menos, muito menos, pudessem chegar aonde quem tendo quase tudo, nunca, pela natureza das coisas, poderia chegar…

Miguel gostava de ir a ver o mar e levar com o vento junto a um promontório com uma ermida voltada para o oceano. Ia crescendo em silêncio, era o único guardião dos seus segredos, e perdera o benefício do convívio turbulento com os outros jovens. Assim se fez adolescente e homem. Sobre a falésia, mirava o mar, adivinhava o mundo e procurava os seus limites. E na falésia se fez poeta, um poeta de muitos pseudónimos, de muitas personalidades, pois as deixara crescer a todas dentro de si. Não sendo o seu mundo diverso, pois não tinha outros meninos e meninas para brincar, deixou que a sua imaginação criasse e não atrofiasse essa enorme diversidade de imagens, que como única realidade tinham o facto de todas terem sido imaginadas.

Não fora o seu avô que lhe dissera um dia, com ele ao colo, que tendo muito pouco, era um caminho possível para ir mais além?

E a sua imaginação tornara-se num torvelinho de ideias. Ele nunca aprendera por uma escola nem por um método. Crescera sem mestres nem cartinhas, deixara-se ir como um selvagem, pelo menos a sua imaginação era-o. No barco a remos tinha método, critério e disciplina, a que o seu avô lhe dera pela prática, pelo exercício e pela experiência. Mas a sua mente tornara-se um alfobre de ideias o mais diversas possíveis, e sem que uma debulhadora, ou uma escola, lhe dessem a indicação de uma ordem ou do seu valor. De quais as que eram úteis, e as que não eram mais que mero joio crescido indevidamente.

E ele não sabia como as separar… Deixara as ideias e as distintas personalidades poéticas e heterónimos crescer sem controlo dentro de si, como um dia deixara crescer e multiplicar as imagens caleidoscópicas de pequenos miguéis louros, rotos, embuziados e desgrenhados à sua volta. Não seguia pelos canônes. Isso era mau. Mas talvez também não o fosse…

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