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21 DEZ 2020
"Água das Casas: Memórias do Natal dos Simples", por José Martinho Gaspar
Por José Martinho Gaspar
O Natal de outros tempos em Água das Casas
O Natal de outros tempos em Água das Casas

Estas memórias de sucessivos Natais da minha infância e juventude, em Água das Casas, norte do concelho de Abrantes, onde nasci e cresci, têm mais de quatro décadas, logo revestem-se de todos os perigos carregados por memórias distantes, de tempos em que me julgava imortal e em que nos satisfazíamos com muito pouco, ou com o muito simples. Não é, pois, por acaso, que colo ao título a cantiga imortalizada por Zeca Afonso.

Em Água das Casas não era necessário fazer um presépio, porque a própria aldeia era, e ainda é, um presépio, iluminado por candeias de azeite, candeeiros a petróleo, petromaxes e, desde 1981, lâmpadas elétricas. Na semana que antecedia o Natal, as estradas enlameadas, pejadas de poças de água, mais habituadas a carroças e a galochas, eram invadidas por automóveis citadinos, Toyotas Corolla, Datsuns 1200 e Vauxhalls, guiados pelos que haviam ousado uma vida urbana. Os filhos deles, meus amigos das férias grandes e mais acanhadas, como as natalícias, juntavam-se-nos e aqueles faziam-se dias cheios, de ares frios, mas capazes de nos aquecer o peito.

Postas as conversas em dia entre os jovens, avaliado o vinho novo pelos mais velhos e pelos que já se queriam crescidos, gritados os cumprimentos entre mulheres, sempre acicatadas por mil afazeres, aproximava-se, em dias curtos e velozes, a noite de 25 de dezembro. Mas antes, rapazolas e homens feitos montavam-se em reboques de motocultivadores e, alegres, seguiam para a zona florestal, onde alguém oferecia um ramo morto de um sobreiro antigo. Quando não havia voluntário, um velho mais rabugento, mesmo sem o saber, oferendava a lenha que havia de arder no centro da aldeia nas noites e dias seguintes. Primeiro, zangava-se, depois sorria, benemérito generoso.

No entardecer de 24, já cheirava a manjedoura, de couves com bacalhau dentro das casas modestas, apenas de couves nos currais das cabras, que espreitavam sobre as portas de madeira grossa, com aquele seu ar inquisidor, espantadas com a algazarra. “Alegrem-se os Céus e a Terra, cantemos com alegria…”, ouvia-se, num coro ainda contido e afinado, entre entradas e saídas em adegas pequenas, onde corria de mão em mão um copo grande de palheto. Se a pinga agradava, engolia-se um gole largo, se já se lhe notava um “pico a azedo”, disfarçava-se a careta e passava-se ao vizinho do lado.

E o jantar era bacalhau cozido, com couves e batatas. Os adultos atiravam-se à posta alta e larga, muito acima da média habitual. Os mais novos, tirando exceções, não se entusiasmavam com este prato de festa, pelo que esperavam pelas filhós, que mães e avós começavam a fazer de imediato, de faces muito rosadas, numa frigideira grande sobre trempes antigas. Uma bola de massa retirada de um cocho de cortiça, já levedada, era estendida com mãos sábias num disco maior do que um palmo, e ficava a boiar sobre o óleo fervente. As que iam ser comidas de imediato eram emboladas em açúcar, as que se destinavam a consumo nos dias seguintes afogavam-nas numa calda de açúcar e canela. Os pequenos não resistiam, daí a pouco queixavam-se com dor de barriga e a seguir já dormitavam sentados num mocho, pequeno banco de madeira, encostados ao canto da lenha.

Para os homens, as coisas não ficavam por aqui. No largo da associação, em torno da grande fogueira, continuava-se a fazer a noite, numa família do tamanho do pequeno mundo que era Água das Casas. Nos meus 14 anos já me era permitido ir e ficar até à meia noite, até aos festejos do nascimento do Menino Jesus. Alguém desviara uma garrafa de abafado, à socapa dávamos dois goles iniciáticos e quando os mais entusiastas voltavam às quadras cantadas, acompanhávamo-los: “(…) já nasceu o Deus Menino, filho da Virgem Maria”. Depois de rodarmos sobre nós próprios, a aquecermo-nos por um lado e a arrefecermos por outro, manigâncias de uma fogueira de rua, assistíamos ao rebentar dos foguetes, aos tiros de caçadeira e à repetição da cantiga, agora desafinada: “Entrai pastorinhos, entrai, por esses portões adentro (…)”. O meu pai faziame sinal, estava na hora e seguíamos em grupo, a evitar as poças. “Com um céu estrelado destes, vamos ter um bom ano de azeitona, compadre”, atirava o ti Luís. Apesar de não me dar trela, a vizinha de cabelos negros haveria de dançar comigo na Passagem de Ano, alvitrava em silêncio. Na cozinha, junto às galochas que deixara sob a chaminé, estava um pequeno saco de rebuçados e um casaco de ganga que andara a namorar na feira da vila. Adveio-me um sorriso alegre, mas também irónico, afinal o Menino Jesus era a minha mãe e as parcas economias que guardava na sua carteira preta. Ah, com a peça de roupa moderna, a miúda não me ia escapar na Passagem de Ano.

A 25, bem cedo, seguíamos para a Matagosa, aldeia vizinha onde assistíamos à missa. O velho padre Matias, sempre despachado, entrava e saía com o latinório, que os mais idosos acompanhavam, mas que ninguém entendia. Finda a cerimónia, beijávamos o menino, enquanto o sacerdote, simpático, nos lançava um “Vinde adorá-lo!”, de permeio com um sorriso. A cantiga era a mesma, desta vez no feminino: “(…) vinde adorar o Menino, no seu santo nascimento”. Almoço melhorado, desta vez carne, algumas guloseimas, mas era já dia de preparar facas e alguidares, pois no dia seguinte ocorreria a matança.

Primeiro os homens, como que vindos do princípio dos tempos, por estradas e campos brancos de geada, gladiadores de uma arena inusitada, num espetáculo anual, raro, a agarrarem os bichos. A faca a cruzar o ar frio, os guinchos do animal, o vapor de água, como se ardessem as entranhas dos homens, ou como se o sangue estivesse ao lume. E ainda os risos, as frases trocadas em voz alta, um foguete a marcar o fim da mortandade. Depois, dezenas de fogueiras, carquejas a arder, para chamuscar, a gente a raspar a pele e os pelos, escaldantes, mas, num ápice, o animal já frio, a ser lavado. O retirar das tripas, um cheiro inconfundível, a assadura ao lume, as mulheres a caminho da barragem, para a lavagem das vísceras, munidas de limões, laranjas e sal. O almoço tardio, os homens bem bebidos, a palpitarem qual seria “o da bandeira”, o porco mais pesado do ano. Ao fim da tarde, numa algazarra única, quando já invadira o ar o cheiro a cominhos das morcelas, fazia-se a pesagem, entre apostas e gargalhadas. A festa havia de durar, no dia seguinte desmancha, ao terceiro dia, salga, isto até à eletricidade e às arcas congeladoras.

Num salto púnhamo-nos na Passagem de Ano. Uma festa para todos, no “casarão”, o salão da associação, que a malta organizou por ser unida, porque nas aldeias vizinhas não havia este espírito. Dança, alegria, comer e beber até fartar, porque sacrifício fazia-se quase todo o ano. O casaco novo ajudou ao encosto, ainda que a tal cachopa não estivesse virada para apertos.

E fechava-se o ciclo natalício com as Janeiras, a que também chamávamos Reis, para homenagear os que já tinham partido. “Acordai se estais dormindo, nesse sono tão profundo, à porta vos estão pedindo pr’as almas do outro mundo (…). E outro grupo, a uma centena de metros, entoava: “(…) pr’as almas do outro mundo, que elas não podem cá vir (…)”. Enquanto a mãe oferecia um chouriço, agarrado às suas saias, aparecia o filho de tenra idade, a espreitar, ranhoso, olhos muito abertos, espantado com tudo aquilo. Ocorriame que podia muito bem ser o nosso Menino Jesus, sem suspeitar que nos 50 anos seguintes não voltaria a nascer uma única criança em Água das Casas.

José Martinho Gaspar

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