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08 MAR 2021
OPINIÃO | "O Sistema Nacional de Saúde ou a Aceitação da Negligência Colectiva?", por Paula T. Gonçalves
Por Jornal Abarca

Quem vos escreve hoje é uma Paula diferente. A Paula que vos escreve é orfã de mãe.

A minha mãe morreu. Este poderia ser um tópico para os demais pensarem que eu sofro de uma espécie de auto-vitimização, lirismo agudo, ou que sou uma dessas escritoras pirosas que usa o existencialismo para poder fazer com que os demais leitores sintam o pesar do que é estar vivo e desaparecer como se nunca tivesse pisado a face da terra. Todos os leitores desta crónica estão enganados, esta crónica é de facto um começo, um manifesto a tudo o que se passará a seguir: eu poder enterrar o corpo da minha mãe na minha aldeia natal. Podia usar as desculpas que me foram dadas para vos ludibriar e deitar areia para os olhos. Podia dizer-vos que a minha mãe morreu porque sofria de uma doênça crónica e porque começava a ser idosa, podia-vos dizer ainda que os atrasos nas consultas dadas aconteceram porque todo o pessoal médico anda muito ocupado com a pandemia. Podia... mas não vou, vou antes falar-vos deste crime hediondo que é vitima o povo portuguës há décadas: chama-se NEGLIGÊNCIA e acontece quando uma pessoa em risco é abandonado e deixado à sua propria sorte.

Todas essas desculpas que me foram dadas são as maiores tretas que me disseram em toda a vida. Não é normal que um português ou que os portugueses precisem de implorar para terem uma médica de família. Não é normal que a maioria dos portugueses com doencas crónicas mude de médica de família como se tratasse de um procedimento comum e esperado. Quem está doente e precisa de tratamento continuado não pode estar constantemente a fazer testes ou a repetir a sua história clínica como se tratasse de um disco riscado. Em Julho do ano passado fui pessoalmente ao Hospital de Amarante implorar para os meus pais terem uma médica de família porque a nossa estava grávida e sumiou-se no ar como se fosse uma criatura mítica, como se a criança que ela tivesse no ventre fosse uma criança aliénegena que nunca mais nasce e que depois de nascer rapta a progenitora. Foi um desafio conseguir um novo médico.

E porque motivo os bons médicos vão estudar e trabalhar para o exterior? Porque motivo não temos médicos e enfermeiros suficientes no nosso país? Porque motivo aceitamos médicos espanhóis e ucranianos no nosso Sistema de Saúde Nacional? Porque o Sistema Nacional de Saúde simplemente não funciona. Eu nunca vi ou ouvi um portuguës pedir contas públicas a um administrador hospitalar. Neste momento todos pagamos impostos mas não sabemos como é gerido esse capital. Nunca sabemos e nunca ninguém fez pressão para saber. A razão desta ignorância é como se havia de esperar, o medo : “ É melhor a menina não falar muito porque se ficar doente ou se a mãe ficar por aqui vai continuar a precisar de assistência.” Eu espero que quem pensa assim vá para o Inferno porque lá sei que não será necessário marcar consulta.

Não aceito que usem este vírus como desculpa. Os problemas que vos referi já existiam antes do aparecimento da pandemia: falta de médicos, enfermeiros mal pagos, a luta constante para marcar a “ tal consulta.” A desolação e dificuldade de mobilidade de muitos idosos aos centros hospitalares, as confusões médicas e aquelas prescrições manhosas de medicamentos de marca, receitados muitas vezes a pessoas carenciadas e mal instruídas que infelizmente não sabem a diferença de preço entre medicamentos de marca branca e os outros. Estimados leitores, eu por graça de Deus não sou doente física ou mental e por isso vos digo: a morte da minha mãe não foi o fim mas o princípio de uma outra luta.

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