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06 OCT 2021
CONTO | "Da partida de Layla ao primeiro beijo de Melusa"
Por Manuel Fernandes Vicente

Jonas nunca foi um homem feliz, e agora, aos 50 anos, tudo no mundo se parecia ter conjugado para conspirar contra ele. Gradualmente, deceção após deceção, foi-se afastando da família, até que num pequeno lapso de tempo perdeu os pais e o irmão, mais novo, com eles perdendo também os únicos elos familiares calorosos que ainda tinha. Sempre foi, desde os primeiros anos da escola, um solitário, o casamento, breve, aos 20 anos foi mais obra de um acaso do que de amor, e quando a mulher partiu com os dois filhos foi para sempre. Nos últimos anos, a sua solidão, que se juntou à precaridade dos empregos mal pagos, biscates e teletrabalhos que conseguia com esforço e com que mal tapava a fome, e à pouca saúde, que começou também a faltar, conduziu-o a uma depressão, podia-se dizer já quase crónica. Valia-lhe uma grande cadela rafeira de pelo longo e ruivo, que numa noite de nevoeiro cerrado recolheu ainda muito pequenina do meio da estrada que mais parecia um lago, onde parecia perdida e aturdida. Nessa altura, condoído com a fragilidade da cachorrinha, parou o carro no meio da estrada e foi recolhê-la, trazendo-a para casa e cuidando dela com os amparos que podia. Com o tempo, a amizade entre ambos foi crescendo. Na verdade, a Layla, assim lhe chamava Jonas, porque gostava de uma canção triste com esse nome, passara a ser a sua companhia, com ela repartia as suas preocupações, era a amiga que o aguardava com saltos e júbilo junto ao portão sempre que regressava a casa.

Um dia Layla já não veio ao portão. Jonas não a encontrou em casa, nem na quinta, nem nos muitos quilómetros de ruas e estradas que ainda calcorreou a chamá-la e à sua procura, de nada valendo também os insistentes e laboriosos pedidos de informação com a fotografia do animal que pôs nas redes sociais. Layla era na verdade o motivo por que vivia, dizia que era a única criatura que verdadeiramente gostava dele e o respeitava. Cuidar dela era, como confessava, a única razão que ainda o mantinha vivo…

Pelas redes sociais, onde procurava pelo paradeiro de Layla, Jonas encontrou Melusa. Fora a única pessoa que no perímetro das suas centenas de amizades digitais, verdadeiramente parecera preocupada com o drama que Jonas vivia. Haviam sido colegas na escola primária da sua pequena cidade, e também ela há uns anos viu desaparecer o cão que vira nascer e crescer - e sabia entender o que o desaparecimento, assim, de um amigo fiel dói, uma dor inexplicável para os outros, mas intensa e funda em quem passa por ela.

Melusa era uma bela mulher magra, de olhos castanhos, longas pernas, cabelos muito negros - e com uma profissão curiosa, que ela descortinara poucos dias depois de se deslocar à Grande Metrópole à procura de uma oportunidade para caber lá. Alugava a sua companhia, a sua presença e o convívio que proporcionava. Ao princípio pareceu-lhe uma atividade estranha. Num mundo em que a solidão imperava, ela achara esquisito que a solidão fosse tanto maior quanto maior a cidade em que se vivia. Parecia um paradoxo: haver solidão onde havia tantas pessoas e com tanta gente à volta. Mas não. E nesta enorme urbe havia uma turba de gente solitária, de pessoas indiferentes, gentios de toda a espécie, a esmagadora maioria deles invisíveis aos demais. Melusa inscrevera-se numa empresa-plataforma de trabalho, a Meigamigaluga, tinha sempre um sorriso misterioso no rosto e era alguém que qualquer pessoa podia alugar para ser amigo dela durante algumas horas. Não havia nada de sexo, nem compromisso, nem intenções ocultas ou sombrias nestas amizades, era apenas uma companhia genuína, com horas marcadas e tarifas a pagar. Uma empatia amigável em que os clientes pagavam para disporem da sua presença - ou da das outras dez mil pessoas registadas e disponíveis na referida plataforma. Alugava-se, conviviam e depois entregava-se no destino, como se entrega uma bicicleta ou um skate de aluguer. Quem a procurava eram sobretudo quadros de topo de grandes empresas ou devotados especialistas em Inteligência Artificial e em novas tecnologias, gente a quem o sucesso nas carreiras tinha deixado como reverso da moeda a mazela de um enorme isolamento social, sem amigos, nem tempo para os fazer. Melusa era antropóloga, uma pessoa culta, com ideais políticos, preocupações ambientais e sem fundamentalismos ingénuos, sensível à vida dos animais em geral e, com o seu timbre doce e de veludo, sempre capaz de encontrar pontes e conversas com que se pudesse sintonizar com o cliente que a quisesse alugar.

Desesperado, Jonas procurou Melusa. Passava semanas sem falar com alguém. Nem no seu moderníssimo bairro, onde todos os serviços, desde o supermercado, já sem operadores de caixa, às lavandarias, aos cinemas e aos próprios cafés, que se tiravam de máquinas depois de introduzir dois dólares, onde tudo era remoto ou automático. Ali, a vida avançava sob o pacto de Fausto, progredia a reboque das tecnologias para uma existência sem contactos físicos humanos, mesmo que houvesse multidões anónimas e indiferentes em redor, a automatização era uma fatalidade, tudo se programava e automatizava, e parecia já não haver ponto de viragem possível. Obviamente Jonas pagaria a Melusa, foram amigos há muitos anos nos bancos da escola, mas Melusa era uma profissional, tinha de ganhar a sua vida, e ele ainda tinha alguns dólares, podiam ser os últimos, mas a necessidade de conversar com alguém, mesma a pagar por tabelas, era um vulcão quase a explodir dentro dele. A solidão roía-o lentamente, e agora, desesperado, fazia o último esforço e o último gesto de que o seu instinto de sobrevivência ainda era capaz.

Encontraram-se num jardim, um grande lago ao centro, cisnes, patos, garças e muitos pardais e arvéolas à sua volta, crianças que jogavam e corriam. Melusa e Jonas passearam e conversaram longamente sobre tudo ao longo de quilómetros, sentaram-se numa esplanada, comeram e beberam algo para se recomporem e depos chegaram a um banco de jardim à sombra de duas tílias de copas magníficas, que pareciam abraçadas uma à outra. Falaram, mais um pouco e, depois de Jonas ter olhado de novo para o relógio, pousou os olhos em Melusa e disse-lhe:

̶  Temos de terminar a nossa conversa, Melusa…

̶  Mas porquê, Jonas, estava a ser tão agradável, e ainda havia tanto para dizermos, és uma pessoa tão inteligente e culta, nunca encontrei ninguém como tu… o pequeno Jonas que ficava na carteira atrás de mim na escola primária, respondeu triste a mulher no seu timbre de um cristal único.

̶  Não posso, Melusa, a verdade é que não posso mesmo, retorquiu o homem, sem conseguir agora fitar a mulher olhos nos olhos.

Fora ao limite das suas posses, levara no bolso todo o dinheiro que tinha, e agora, ao final da tarde, chegara aos limites do tarifário. Restava pagar a Melusa pela agradável tarde que lhe proporcionara. Entregou todo o dinheiro que tinha à esbelta mulher, e viu-a partir lentamente ao longo do trilho do parque, vendo-a, como um navio que se afasta no mar até desaparecer. Nunca tiraria os olhos daquele vulto de porte tão feminino e suave a afastar-se. E no ponto do horizonte em que ala desapareceu, lá ficou preso o seu olhar.

Lembrou-se ainda de uma parte de um poema do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, que fixara ainda na adolescência: “Ninguém, mais ninguém, eu só,/ Só num vasto mar sem fim./ E jamais houve um santo/ Que se apiedasse de mim”. E talvez tenha mesmo adormecido no banco. Algumas horas depois abriu os olhos e olhou para onde Melusa abalara. E, entre a noite e os candeeiros do parque, um ponto surgia agora num movimento que rapidamente se converteu no ondulante andar de uma mulher, que parecia já querer correr. Jonas percebeu logo nele Melusa. E ambos se atiraram um para o outro num longo e silencioso beijo, e num abraço onde já não cabia mais nenhuma solidão.

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