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19 FEV 2022
OPINIÃO | "Vicente Pessoa - O Mestre do Torto Pelo Direito", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

Como bem nota João de Barros, é interessante ver como nesta época, nos chamados Ditos e Motes Dignos de Memória ainda que em manuscritos, folhetos e avulsos, “uma coisa pequena ou uma simples frase, fazem conhecer melhor os costumes e a maneira de ser das pessoas e do povo que as disseram e ouviram, do que muitos relatos de feitos heroicos um tanto ou quanto imaginários”(Décadas da Ásia). É um período até fértil nesse tipo de cenas, eventos e episódios seiscentistas, copiados ou narrados sem autor certo - só os conhecemos por terem sido redescobertos e colecionados ao longo dos tempos, por mãos autorizadas como Carolina Michaelis, Manuel de Arriaga, Oliveira Martins, Veríssimo Serrão e Hermano Saraiva, entre outros.

Veja-se o caso do lisboeta Vicente Pessoa. Reina D. João III (1527-1557). Desconhecem-se os pais e datas de nascimento e morte, mas sabe-se que foi um excelente artífice metálico (“oficial mecânico”), autorizado pelo município a ter a sua tenda aberta ao público para as bandas de onde é hoje a Praça do Município e Rua do Arsenal, como terá sido mostrado por “marca” ou letreiro tosco sob a porta (“sinal aberto”). Curioso que se chame Pessoa e fosse “lisboeta”. Não seria certamente antepassado do heterónimo dos heterónimos, esse sim, nado em pleno dia de Santo António (daí o duplo “Fernando António” batismal, já que o primeiro nome foi o original do santo antes de professar). Mas o nome Vicente” chama a atenção. Sabe-se que no tempo do Pessoa-Poeta maior, era ainda comum encontrar em lojas de vinhos, secos e molhados de Alfama, Madragoa e Baixa lisboeta, um corvo no poleiro, como animal de estimação, com quem toda a gente brincava e chamava “Vicente”. Uma alegoria da heráldica alfacinha dos corvos a guardar, nos topos da barcaça vazia ao sabor das marés, o corpo do padroeiro de Lisboa, S. Vicente.

Mas vamos ao 1.º episódio. Parece que Vicente Pessoa teve certa vez, uma discussão acesa com um concorrente e que levou a troca de insultos de peso. Este foi-se queixar a um juiz (corregedor), que mandou um meirinho colher nomes das testemunhas do incidente. Mas Vicente era esperto - como tinha um amigo “procurador da cidade”,conseguiu abafar o assunto. O ofendido não se ficou pelos ajustes, e apresentou nova queixa, ao que o juiz mandou o escrivão citar Vicente, sob pena de prisão. Vicente apresenta-se e o juiz, após perguntar o nome, pareceu-lhe uma pessoa vulgar (“não viu nele mais pessoa que no nome), e perguntou-lhe a profissão, sendo a resposta, sibilina: -Senhor, sou homem que faço torto do direito.O juiz abespinhou-se, viu na resposta uma ofensa ao tribunal (“resposta dita em nota de infâmia aos oficiais da justiça”)e, irritado, perguntou-lhe de novo, a profissão, Ao que Vicente foi obrigado a responder:

- Senhor, sou anzoleiro.

Risada geral no tribunal - “foi tão grande a risada que o corregedor, posto que fosse assaz carrancudo, não pôde ter o risoe mandou Vicente em paz. O dito de Vicente criou fama. Para lá de ser considerado um dos melhores anzoleiros de Lisboa, dispunha de grande carteira de clientes - desde os simples anzóis de pesca ribeirinha, aos grandes anzóis-fateixa, que, amarrados a cabo espesso, eram lançados com isco pela amurada das naus e galeões em mar aberto e ao sabor da corrente, para pescar peixes graúdos que alimentassem a tripulação.

Fosse como fosse, consta que passou a ser comum, juntarem-se pessoas junto à tenda do Pessoa anzoleiro para trocarem notícias e sobretudo, para ouvirem os seus comentários, de alma e coração sempre abertos. Contando-lhe um letrado que uma dama do Paço tivera no dia anterior, um filho em parto feliz mas demorado, apesar de só ter casado há 6 meses, Vicente não hesitou: “- Seria isso obra de empreitada… ou meteu mais mão-de-obra?”

Há mais desabafos e relatos do nosso anzoleiro, que admitiu “nunca ter feito das tripas, coração – peio contrário, fazia por vezes, coração das tripas”. Anatomias de lado, D, João III começa a nomear bastantes fidalgos menores (fidalgotes)para cargos públicos “com direito a tença”,(pensão vitalícia), “os quais entravam pobres e saíam ricos”,não por mérito próprio mas devido a jogo de interesses na Corte, onde abundava a corrupção (sobretudo em ofícios nomeados para a Índia). Não contente com isso, quando esses fidalgos regressavam a Portugal, pediam ao rei que lhes concedesse o hábito da Ordem de Cristo (recebendo nova tença). Atendendo ao escândalo que se cria em Lisboa, o comentário Vicentino não tardou: “- Tempos houve em que se punham os ladrões nas cruzes. Agora põem cruzes nos ladrões.”  

Mude-se a agulha para Évora. Vicente tinha um bom amigo, também “oficial mecânico”, que se chamava Ramos e que ocasionalmente vinha à capital, comprar mercadoria. Não seria muito inteligente, ao que se diz. Prova a pergunta que faz a Vicente – há um ano, numa noite fria, pleno Inverno, estava deitado com a mulher e decidiram contar quantos cornudos havia na sua rua”.É que havia muitos almocreves, bufarinheiros e mercadores que faziam frequentes viagens e carregos de Évora para Castela, Santarém, Coimbra, Torres Novas e Almeirim, deixando as esposas sozinhas, no frágil entremeio das ausências conjugais. Ramos contou 19 cornudos. Ao que a mulher discordou: - Erramos, marido, mais são.Foi uma longa discussão, sem acordo. – 19! – Não, erramos, marido, mais são!Tudo isto agitou a cabeça do pobre Ramos que pediu a Vicente que explicasse - como sabia ela que eram mais? Vicente terá talvez sorrido. Mas não se fez rogado:

- Amigo, erras sim, mas na palavra…

– Como assim?

– Porque o que a tua dona terá dito foi “Ramos, marido, mais são!”.  

Como conclui o texto do episódio – “nunca o coitado caiu em si que por ele o dizia, mas sempre errava na conta”.Lógico, o pobre ser ramalhal nunca se incluiu no número dos premiados cornudos de boa cepa.

 

A acrescer ao sabor destes episódios, não se esqueça como os portugueses naquele tempo cortejavam (e como ainda o fazem, é claro) a inevitável atração pelo proibido, Pelo não pode ser. Pelo é pecado. É que no meio de quase 4 mil jogos de palavras, rimas, trocadilhos, motejos, derivados, para-fonéticos e linhas de rendada malícia que se encontraram, é também com D. João III que se implantam, retorcem e atorresmam os tentáculos da Inquisição em Portugal.

Mais exatamente em 1536, apenas 9 anos após o início do reinado tri-joanino.

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