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20 JUN 2022
OPINIÃO | "Tio Manel", por Anabela Ferreira
Por Jornal Abarca

Hoje a minha única tia materna faz anos. Cumpro também o quarto dia covid – obséquio dos iluminados que aboliram o uso de máscara obrigatório nas escolas, ainda refinando a sua estupidez colocando como argumento copiado de que, se esse uso não era obrigatório em bares e discotecas, porque seria então nas escolas. Até o latim é mal empregue para responder, mas cá vai – só frequenta bares e discotecas quem quer, nem alunos nem professores podem decidir se vão ou não à escola, pois é o seu local de aprendizagem e trabalho, o mesmo onde uns e outros deveriam estar protegidos por todos.

Benditas vacinas. Consegui, finalmente, tomar um café e na varanda. Faz toda a diferença. Tenho a certeza que hoje é o dia que marca o ponto de início da recuperação. Achei coragem de rabiscar este texto, mais um indício de melhoria. Outro dia terei paciência de o passar no teclado. O papel é o amigo mais fácil, ainda.

Contacto a minha tia aniversariante pelo whatsapp. Tecnologias que ela teve que dominar para poder estar mais próxima de um dos filhos emigrado e de um dos netinhos. Na foto dessa rede aparece-me ao lado de meu tio. Ela mais sorridente, ele rosto oval moreno. Nunca alterou a foto, apesar dos anos se passarem e de ele já nos ter deixado. Este par, tal como os meus pais, inseparável até ao fim. Casais à antiga portuguesa.

Fixo-me na imagem deste tio querido, tenho saudades. Apesar de ser tio por afinidade, era tão estimado, e até mais, do que outros que o são pelo sangue. Ele sabia-o e correspondia. Amiúde dizia que eu era a sua sobrinha querida. Com um feitio particular, mas muito bem-disposto e uma pessoa excecional, com a sua coleção de vespas em miniatura para a qual contribuí sempre que chegava o seu aniversário ou o Natal. Ele próprio conduzia a sua carismática vespa vermelha. Com ele, cedo aprendi a versão adaptada, pragmática e popular do carpe diem horaciano – “Come e bebe enquanto cá andas, porque vais passar muito tempo morto”. Era a sua forma pacífica de dizer aproveita o momento, a vida. Farto de guerra ficou nos anos de guerra colonial e na zona chamada “Cem por cento”, linha da frente de combate, pertencendo aos comandos. Luta física e psicológica. Guerra que lhe levou, a ele e a muitos, doces anos da juventude e a inocência. Já o meu pai, por ter um curso na altura, de datilografia, escapou à luta no mato e foi numa base militar que desempenhou a função de operador cripto. Um exemplo que dou em como um mero curso pode proteger e salvar a vida.

O dia está calmo e, apesar de ser a minha tia a fazer anos, eu também recebi prendas. Além de hoje, apaziguadas as dores, conseguir finalmente vir à varanda, os milharoses, que sabia estarem por cá devido ao seu canto peculiar já ouvido, parecem cochichos de petizes, decidiram presentear-me com a sua presença e visão, empoleirados no cabo oblíquo à casa. Esvoaçam e esvoaçam em círculos brilhantes, luminosos, coloridos no fundo verde dos montes e azul do céu. Pequenos arco-íris voadores. Lindos. Prendas esvoaçantes da natureza.

Obrigada!

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